Gilvan Fogel (2003:18-19) – o ser da coisa enquanto seu “como”

Comecemos com a expressão “ser” — ser das coisas. No caso, parece, pode-se dizer também: a “essência” das coisas. Mas e daí: o que é essência? Diz-se: a essência de uma coisa aponta ou diz, portanto, mostra, isto que a coisa realmente é, isto é, isto que ela no seu “imo”, na sua “interioridade” maior, no seu “mais profundo” é! Palavras! Palavras! Palavras!

Afinal, qual o ser, a essência da mesa, da laranja? O que é que a mesa no seu “imo”, no seu “mais profundo” realmente é? E a laranja? Onde é que está o profundo da mesa, da laranja, das coisas? “Atrás” das coisas? “Além” delas? Essa pergunta é boa, isto é, esse modo de perguntar é adequado, é oportuno?!

Bem, se a essência de uma coisa está “atrás” ou “além” dela, então a coisa não é mais a coisa! Eu corto a laranja, desfaço-a em gomos e não encontro o seu “dentro”, o seu “mais profundo”. Racho a mesa e só encontro… serragem, madeira, “pedaço” de mesa, que já não é mais mesa. E, estranho, tudo é superfície, sempre só superfície. Onde é, onde está afinal a essência, o miolo, o “caroço”, o profundo da mesa?! Será sempre como no caso do miolo, do cerne, do caroço da cebola — casca, casca, casca??!! Superfície! Superfície! Superfície!

Parece que o ser das coisas está mesmo no seu aparecer. Mas há aparecer e aparecer. Há o aparecer do engodo e do engano, da burla, da farsa, da mentira, do erro. Digo, por exemplo, “isto parece, mas não é!”. Pensei que fosse um tufo de trigo maduro e era a juba de um leão. Terrível engano! Ou: é evidente que se trata de “um lobo com pele de cordeiro”. A baila vêm coisas como esperteza, burla, engano, engodo, farsa, mentira. Também tudo isso é aparecer e, enquanto tal, tem lá sua verdade, isto é, tem também sua essência! Deixemos isso, porém, de lado.

Quando digo da mesa: “é mesa”, é verdade que digo isso porque isso que digo ou que chamo “mesa” aparece, mostra-se como mesa. Parece que ser é aparecer e este é um mostrar-se como — como isso, como aquilo, como aquilo outro. Se assim é, o problema agora é transferido para esse como. Dito de outra forma: quando pergunto “o que é?” e respondo: “é isto”, “é aquilo”, este é, na verdade, está falando, apontando ou denotando o como, que é o que está em questão, por exemplo, a mesa ou a laranja no seu aparecer, no seu presentificar-se ou na sua presença.

Recapitulando e resumindo, tem-se que, perguntando pelo ser das coisas, nesta rápida incursão, chegamos à seguinte instância: o ser de uma coisa é aquilo que a coisa realmente é. E o que uma coisa realmente é, é o seu como. Então, se quisermos realmente perguntar tanto pelo “é” como pela “coisa”, é preciso apertar o cerco a este como, para ver como ele se faz ou se dá. Parece que tanto o “é” quanto a “coisa”, cada qual, é sempre um modo de ser possível, isto é, um como.

FOGEL, G. Conhecer é criar. São Paulo: Discurso Editorial, 2003