Gadamer (VM2:361-362) – destruição e desconstrução

Meurer

Quando Heidegger elevou o tema da compreensão de uma metodologia das ciências do espírito à condição de um existencial e fundamento de uma ontologia da “pre-sença”, a dimensão hermenêutica já não representou um estrato superior na investigação da intencionalidade fenomenológica, baseada na percepção física, mas fez aflorar sobre uma base europeia e dentro da orientação da fenomenologia o que na lógica anglo-saxônica aparecia quase simultaneamente como a linguistic turn. No desenvolvimento originário da investigação fenomenológica levada a efeito por Husserl e Scheler, a linguagem permaneceu na penumbra, apesar da guinada que se deu rumo à Lebenswelt (”mundo da vida”).

Na fenomenologia repetira-se o abissal esquecimento da linguagem que já havia caracterizado o idealismo transcendental e que parecia encontrar respaldo na infeliz crítica de Herder à guinada transcendental kantiana. A linguagem não encontrou um lugar de honra nem sequer na dialética e na lógica hegelianas. Por outro lado, Hegel mencionou ocasionalmente o instinto lógico da linguagem, cuja antecipação especulativa do absoluto impôs a tarefa da obra genial da Lógica hegeliana. Na verdade, por trás da germanização da linguagem escolar da metafísica, imposta por Kant no estilo rococó, a contribuição de Hegel à linguagem da filosofia foi de inegável relevância. Hegel destacou formalmente a grande energia de Aristóteles na formação da linguagem e dos conceitos, e seguiu de perto seu egrégio exemplo ao procurar salvar na linguagem do conceito muito do espírito de sua língua materna. Essa circunstância acarretou-lhe o inconveniente da intradutibilidade, uma barreira que tem sido insolúvel durante mais de um século e que hoje continua constituindo um obstáculo difícil de ultrapassar. Mas o certo é que tampouco Hegel outorgou à linguagem um posto central.

Em Heidegger repetiu-se uma irrupção parecida, e até mais vigorosa, do impulso originário da linguagem na esfera do pensamento. O que contribuiu muito para isso foi seu recurso consciente à originalidade da linguagem filosófica grega. Assim, em virtude da força intuitiva de suas raízes plantadas no mundo da vida, a “linguagem” retomou toda sua virulência e penetrou decisivamente no sutil artifício descritivo da fenomenologia husserliana. Era (362) inevitável que a própria linguagem se convertesse em objeto de sua auto-compreensão filosófica. Quando já em 1920, como eu mesmo posso testemunhar, partindo de uma cátedra alemã, um jovem pensador — Heidegger — começou a meditar sobre o significado de “mundear” (es weltet), isso representou uma brecha aberta na linguagem escolar da metafísica, que se pautava por uma linguagem sólida, mas inteiramente distanciada de suas origens. Esse fato representou ao mesmo tempo um acontecimento no âmbito da linguagem e a conquista de uma compreensão mais profunda da própria linguagem. A atenção que a tradição do idealismo alemão dedicou ao fenômeno da linguagem, desde Humboldt, os irmãos Grimm, Schleiermacher, Schlegel e por último Dilthey, e que deu um claro impulso à nova ciência da linguagem, sobretudo à linguagem comparada, permaneceu no âmbito da filosofia da identidade. A identidade do subjetivo e o objetivo, de pensamento e ser, de natureza e espírito se manteve até a filosofia das formas simbólicas inclusive, entre as quais destaca-se a linguagem. Como o ponto extremo desse fenômeno, encontramos a obra sintética da dialética hegeliana, que através de todas as contradições e diferenciações imagináveis, buscava restabelecer a identidade e elevar a originária ideia aristotélica do noesis noeseos a sua perfeição mais apurada. Foi assim que o parágrafo final da Enciclopédia de ciências filosóficas de Hegel o formulou, de um modo um tanto insolente. Como se a longa história do espírito tivesse dirigido todo seu esforço a uma única meta: tantae molis erat se ipsam cognoscere mentem, conclui Hegel evocando um verso de Virgílio.

Original

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

Designed with WordPress