Entretanto, havíamos partido do conhecimento de que também a compreensão que se exerce nas ciências do espírito é essencialmente histórica, isto é, que também nelas um texto só é compreendido, se for compreendido em cada caso de uma maneira diferente. Este era precisamente o caráter que revestia a missão da hermenêutica histórica, o refletir sobre a relação entre a identidade do assunto comum e a situação mutável, na qual se trata de entendê-lo. Tínhamos partido do fato de que a mobilidade histórica da compreensão, relegada a segundo plano pela hermenêutica romântica, representa o verdadeiro centro de um questionamento hermenêutico adequado à consciência histórica. Nossas considerações sobre o significado da tradição na consciência histórica engatam na análise heideggeriana da hermenêutica da facticidade, e procuram torná-la fecunda para uma hermenêutica espritual-científica. Mostramos que a compreensão é menos um método através do qual a consciência histórica se aproximaria do objeto eleito para alcançar seu conhecimento objetivo do que um processo que tem como pressuposição o estar dentro de um acontecer tradicional. A própria compreensão se mostrou como um acontecer, e filosoficamente a tarefa da hermenêutica consiste em indagar que classe de compreensão, e para que classe de ciência, é esta que é movida, por sua vez, pela própria mudança histórica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Com a cunhagem ontológica que o nosso questionamento hermenêutico sofreu, acabamos nos acercando de um conceito metafísico, cujo significado podemos tornar fecundo ao voltarmos às suas origens. O conceito do belo, que no século XVIII compartilhava com o conceito do sublime uma posição central dentro da problemática estética, e que ao longo do século XIX acabaria por ser completamente eliminado pela crítica estética ao classicismo, foi antes um conceito metafísico universal e teve dentro da metafísica, isto é, da teoria geral do ser, uma função que não estava, de modo algum, restringida ao estético, no sentido estrito. Mostrar-se-á que também esse velho conceito do belo pode ser posto a serviço de uma hermenêutica abrangente como a que resultou a partir da crítica ao metodologismo das ciências do espírito. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Ninguém poderá pensar, certamente, em querer tornar retroativo esse desenvolvimento e procurar recompor, por exemplo, a categoria metafísica do belo, como a encontramos na filosofia grega, renovando a última reformulação dessa tradição, a estética da perfeição do século XVIII. Por mais insatisfatório que nos tenha parecido o caminho que Kant traçou rumo ao subjetivismo na nova estética, não obstante, Kant conseguiu demonstrar de maneira convincente até que ponto é insustentável o racionalismo estético. Só que não é correto fundamentar a metafísica do belo unicamente sobre a ontologia da medida e da ordem teleológica do ser, a que apela, em última instância, a aparência classicista da estética da regra do racionalismo. De fato, a metafísica do belo não é a mesma coisa que essa aplicação do racionalismo estético. Ao contrário, o retorno a Platão permite reconhecer no fenômeno do belo um aspecto completamente diferente, justamente o que nos vai interessar agora para o nosso questionamento hermenêutico. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Trata-se pois da metafísica platônico-neoplatônica da luz, com a qual se vincula a doutrina cristã da palavra, do verbum creans, a que antes nos dedicamos detidamente. E se designamos a estrutura ontológica do belo como o aparecer, em virtude do qual as coisas se mostram em sua medida e em seu contorno, isso vale na mesma medida para o âmbito inteligível. A luz que faz com que tudo apareça de maneira que seja luminoso e compreensível em si mesmo, é a luz da palavra. Em consequência, a metafísica da luz é o fundamento da estreita relação entre o aparecer do belo e a evidência do compreensível . Foi justamente essa relação que orientou nosso questionamento hermenêutico. Gostaria de recordar, nesse ponto, como a análise do ser da obra de arte nos tinha conduzido ao questionamento da hermenêutica, e como esta tinha se ampliado até converter-se num questionamento universal. Isso tudo deu-se sem qualquer consideração paralela da metafísica da luz. Se considerarmos agora o parentesco desta, com nosso questionamento, ajudar-nos-á o fato de que a estrutura da luz pode ser separada, evidentemente, da representação metafísica de uma fonte luminosa sensório-espiritual, ao estilo do pensamento neoplatônico cristão. Isso já pode ser apreciado na interpretação dogmática do relato da criação, em Santo Agostinho. Este observa que a luz foi criada antes da distinção das coisas e da criação dos corpos celestes que a emitem. Ele põe uma ênfase especial no fato de que a criação inicial do céu e da terra tem lugar ainda sem a palavra divina. Deus só fala pela primeira vez ao criar a luz. E esse falar, pelo qual se nomeia e se cria a luz, é interpretado por ele como um vir à luz espiritual, que tornará possível a diferença entre as coisas formadas. Só pela luz a massa informe e primeira do céu e da terra adquire a capacidade de configurar-se em muitas formas diferentes. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
A experiência hermenêutica carrega uma tensão não só desde o surgimento da ciência moderna, mas desde que se pleiteou um questionamento hermenêutico: uma tensão que jamais se resolve. Desse modo, ela não se deixa enquadrar sob o esquema de um autoconhecimento na alteridade, no qual o sentido seria sempre apreendido e transmitido plenamente. Esse conceito idealista do sentido do compreender não me parece desorientar apenas Apel, mas a maioria de meus críticos. Eu próprio admito que uma hermenêutica filosófica reduzida a idealismo necessita de complemento crítico. Procurei demonstrar isso na crítica aos seguidores hegelianos do século XIX, Droysen e Dilthey. Mas o impulso da hermenêutica não foi sempre “compreender” pela interpretação o estranho, a vontade inescrutável dos deuses, a mensagem de salvação ou as obras dos clássicos. Tampouco isso significa sempre uma inferioridade constitutiva daquele que compreende frente àquele que fala ou que dá a entender? VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.
O volume Hermeneutik und Dialektik (Hermenêutica e dialética, 1970), escrito em minha homenagem, através do amplo espectro de suas contribuições, dá uma boa ideia do alcance dos problemas filosóficos abordados pelo questionamento hermenêutico. Nesse entremeio, a hermenêutica filosófica tornou-se um constante companheiro de diálogo também no âmbito específico da metodologia hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.