Já em 1934, na crítica acertada de Moritz Schlick ao dogma das proposições protocolares, via com clareza que as ciências da natureza incluem uma problemática hermenêutica. Todavia, quando as idéias desse livro se desenvolveram, nos anos trinta, anos em que as circunstâncias temporais trouxeram consigo um crescente isolamento, a concepção que se impôs formalmente foi o fisicalismo e a unity ofsáence. O linguistic turn da investigação anglo-saxônica ainda não havia despontado no horizonte. Só pude estudar a obra tardia de Wittgenstein depois de ter atravessado minha própria trajetória de pensamento. E também foi só bem mais tarde que comprovei na crítica de Popper ao positivismo motivos muito próximos à minha própria orientação. VERDADE E METODO II Introdução 1.
Mas na verdade não apenas o legado do humanismo estético mas também o legado da antiga scientia practica vem reforçar a problemática da hermenêutica. Essa scientia se destacava como um modo de saber próprio (alio eidos gnoseos) frente ao conceito de ciência da antiga episteme (segundo o que se compreende por ciência hoje, só a matemática pode satisfazer a esse conceito) não só a partir de seu projeto originário na ética e política aristotélicas. Ela possui sua própria legitimidade — esquecida pela consciência geral — também frente ao conceito moderno de ciência e sua versão técnica. É tarefa da hermenêutica refletir inclusive sobre as condições especiais do saber que aqui são decisivas. No conceito de ethos (formado sob a força conformadora dos nomoi, isto é, das instituições sociais e da educação que se dá nessas instituições), Aristóteles resumiu as condições que facilitam o autêntico saber para a vita practica. Isso teve também sua importância no presente, uma vez que os melhores aliados de uma hermenêutica da facticidade foram justamente esses aspectos críticos da filosofia aristotélica contra a teoria platônica das idéias. Mas, além disso, são testemunhos inequívocos de que as condições sociais de nosso saber podem interferir no ideal da ciência sem pressupostos. Assim, também o exame desse ideal da ausência de pressupostos pertence às tarefas de uma reflexão hermenêutica radical. Não se deve esquecer aqui o impulso liberador que expressa o mote de (434) uma ciência sem pressupostos (expressão que tem sua origem na situação de luta cultural, após 1870). Esse impulso anima e sustenta também o movimento do Iluminismo e sua prolongação na ciência moderna. Mas a ingenuidade irresponsável que denota a aplicação desse termo no campo específico das ciências históricas e sociais fica patente não somente no utopismo das conseqüências das ciências sociais e das aplicações concretas derivadas da teoria da ciência do “círculo de Viena”, como também e sobretudo nas graves aporias em que se enredou a teoria neopositivista da ciência com sua doutrina sobre as proposições protocolares. O historicismo ingênuo inspirado na escola de Viena encontrou assim uma resposta adequada na crítica de Karl Popper à teoria da ciência. De modo semelhante, os trabalhos de Horkheimer e Habermas sobre crítica da ideologia puseram a descoberto as implicações ideológicas subjacentes na teoria positivista do conhecimento e sobretudo em seu pathos científico-social. VERDADE E METODO II ANEXOS 28.
Assim, a constatação de que o diálogo filosófico com a filosofia das ciências não pode realizar-se plenamente parece fundamentada na natureza das coisas. Um bom exemplo para isso é o debate entre Adorno e Popper, assim como o de Habermas com Albertz. Além (453) disso, o empirismo da teoria da ciência, ao instituir a “racionalidade crítica” como paradigma absoluto da verdade, deve considerar a reflexão hermenêutica como um obscurantismo teológico. VERDADE E METODO II ANEXOS 29.
Felizmente pode haver um acordo objetivo tanto no fato de que há somente uma única “lógica da investigação” quanto no de que esta não é tudo. Isso porque os pontos de vista seletivos que caracterizam os questionamentos relevantes, instituindo-os em tema de investigação, não podem ser conquistados através da lógica da investigação. Mas o que chama a atenção nesse ponto é que, em nome da racionalidade, a teoria da ciência abandona-se a um completo irracionalismo e considera ilegítima a tematização desses pontos de vista da prática do conhecimento, feitos pela reflexão filosófica. Chega ao ponto, inclusive, de acusar a filosofia, que faz essa reflexão, de estar imunizando suas afirmações contra a experimentação. Não parece dar-se conta de que ela mesma acoberta uma imunização muito mais nociva frente à experiência, por exemplo, frente à experiência do senso comum e à experiência de vida. Isso ocorre toda vez que o domínio científico de nexos parciais fomenta uma aplicação desprovida de crítica, por exemplo, quando espera que os especialistas se responsabilizem pelas decisões políticas. Mesmo depois de ter sido analisada por Habermas, a polêmica entre Popper e Adorno continua sendo insatisfatória. Concordo com Habermas que sempre está em jogo uma pré-compreensão hermenêutica e que por isso precisa de um esclarecimento reflexivo. Mas também aqui, junto com a “racionalidade crítica”, afirmo novamente que um esclarecimento total não passa de pura ilusão. VERDADE E METODO II ANEXOS 29.