Gadamer (VM): objeto da filosofia

Somente a tradição filosófica do Ocidente pode conter uma resposta histórica para essa questão. Só a ela podemos interrogar. As enigmáticas formas enunciativas sobre profundidade e sabedoria, desenvolvidas em outras culturas, sobretudo no distante Oriente, mantêm, no fundo, uma relação não verificável frente ao que se chama de filosofia ocidental, especialmente porque a ciência, em nome da qual questionamos, é ela mesma uma descoberta ocidental. Se é assim que a filosofia não tem nenhum objeto próprio em que possa se medir, e no qual possa adequar-se com seus recursos conceptuais e de linguagem, então o objeto da filosofia não seria o próprio conceito? O conceito, assim como costumamos usar essa palavra, é o verdadeiro ser. Dizemos, por exemplo: “isto sim é o conceito de amigo”, quando queremos elogiar alguém pela sua capacidade de ser amigo. Será que isso significa que, enquanto o (78) objeto da filosofia e no modo como se relaciona com o que é, esclarecendo e conhecendo, o conceito é, por assim dizer, o autodesenvolvimento do pensamento? De certo, essa é a resposta da tradição desde Aristóteles até Hegel. No livro Gamma (O da Metafísica, Aristóteles distinguiu a filosofia e sobretudo a metafísica, a filosofia primeira, como conhecimento em geral, afirmando que todas as outras ciências têm um âmbito positivo e assim um objeto específico. Como ciência, a filosofia que buscamos aqui não tem um objeto assim delimitado. Tem em mente o ser como tal e a essa pergunta pelo ser como tal liga-se a consideração de modos de ser distintos entre si: o eterno e o divino imutáveis, o que está em constante movimento, a natureza, o ethos e sua vinculação, o homem. É assim que se nos apresenta a tradição da metafísica, com seus temas principais, até a configuração que Kant deu à metafísica da natureza e à metafísica dos costumes, na qual o saber sobre Deus estabeleceu uma ligação específica com a filosofia moral. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 7.

O mesmo ocorre, porém, com o conceito. Um sistema de conceitos, uma multiplicidade de idéias, que se tivesse de definir, delimitar e determinar cada uma por si, não atingiria a questão radical da conceptualidade da filosofia e da filosofia como conceptualidade. Isto porque na filosofia está em questão a unidade “do” conceito. Quando Platão fala de sua teoria das idéias e busca impor filosoficamente essa “tão comentada” teoria das idéias, ele fala do uno e da pergunta sobre como esse uno é ao mesmo tempo múltiplo. Ao procurar em sua Lógica refletir sobre os pensamentos de Deus, que estão em seu espírito, como totalidade das possibilidades do ser, antes do início da criação, Hegel encerra o livro com “o conceito”, enquanto o autodesenvolvimento pleno dessas possibilidades. A unidade do objeto da filosofia dá-se de tal modo que, assim como a unidade da palavra acontece em torno do que é digno de ser dito, também a unidade do pensar filosófico ocorre em torno do que é digno de ser pensado. Não são as definições singulares dos conceitos que possuem uma legitimação filosófica autônoma. É sempre (81) apenas um princípio unitário do pensar que determina a função do conceito singular em sua significação legítima. Vale a pena guardar isso na memória, para quando se quer colocar a pergunta pela tarefa de uma história dos conceitos, que não se presta simplesmente a um trabalho auxiliar da investigação filosófico-histórica, mas deve inserir-se na locupletação da filosofia e realizar-se como “filosofia”. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 7.

Pois bem, qual é o lugar teórico dessa vontade de saber e da reflexão sobre praxis e política? Aristóteles fala ocasionalmente de uma divisão da “filosofia” em três ramos: filosofia teórica, prática e poética (com essa última legou-nos a conhecida “poética”, nela incluindo também a retórica ou a criação de discursos). Mas entre os extremos do saber e do fazer está a praxis, que é o objeto da filosofia prática. Seu verdadeiro fundamento é o lugar central e o distintivo essencial do ser humano em virtude do qual esse não desenvolve sua vida seguindo a pulsão dos instintos, mas guiando-se pela razão. Por isso, a virtude básica em consonância com a essência do homem, é a racionalidade que guia sua praxis. O grego expressa-a com a palavra phronesis. A pergunta de Aristóteles é a seguinte: em que consiste essa racionalidade prática entre a autoconsciência do cientista e a do especialista, do fautor, do engenheiro, do técnico, do artesão etc. Que relação tem essa virtude da racionalidade com a virtude da cientificidade e a virtude da competência técnica? Mesmo sem conhecer nada de Aristóteles, deve-se reconhecer que essa racionalidade prática possui um lugar relevante. Qual seria nossa posição na vida e como lidaríamos com nossos assuntos se tudo fosse ditado pelo especialista ou se o tecnocrata pudesse dispor de tudo? Nossas decisões éticas e políticas não devem ser as nossas decisões? Mas também é certo que só podemos sentir-nos responsáveis no âmbito político, como o somos em nossa própria vida individual, se deixarmos a decisão nas mãos do político racional e responsável, no qual depositamos nossa confiança. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.

Nessa altura talvez possamos acrescentar que também a Logische Propädeutik (Propedêutica lógica), proposta por Kamlah e Lorenzen, que exige do filósofo a “introdução” metodológica de todos os conceitos legítimos para um enunciado cientificamente comprovável, está imersa no círculo hermenêutico de um saber prévio, pressuposto no âmbito da linguagem, e num uso de linguagem que deve ser purificado pela crítica. Nada temos contra um ideal da construção de uma linguagem científica, que em muitos âmbitos traz certamente importantes esclarecimentos, sobretudo para a lógica e para teoria da ciência. Para esse ideal, enquanto educação para um falar responsável, não se deveria colocar nenhuma restrição, mesmo no campo da filosofia. Aquilo que Hegel se propôs a fazer em sua Lógica, sob o pensamento central de uma filosofia que abarcasse toda a ciência, é o mesmo que procura fazer Lorenzen, de maneira nova, na reflexão sobre “investigação” e sua justificação lógica. De certo, trata-se de uma tarefa legítima. No entanto, gostaria de defender que a fonte do saber e do saber prévio, que emana da interpretação de um mundo sedimentado na linguagem, continuaria mantendo sua legitimidade mesmo que pudéssemos pensar a linguagem ideal da ciência como completa e perfeita, e isso vale também para a “filosofia”. O Iluminismo da história dos conceitos, linguagem que eu mesmo adotei em meu livro e que uso da melhor maneira possível, é recusado por Kamlah e Lorenzen com a objeção de que o fórum da tradição não pode pronunciar nenhum julgamento unívoco e seguro. Creio ser uma exigência legítima poder responsabilizar-se diante desse fórum. Isso porém não significa inventar uma linguagem adaptada às novas idéias, mas extraí-la da linguagem viva. Essa exigência só pode ser realizada pela linguagem da filosofia, se conseguir manter aberto o caminho que vai da palavra para o conceito e vice-versa. Isso parece-me ser uma instância que mesmo Kamlah e Lorenzen levam em consideração em seu próprio procedimento como o uso de linguagem. De certo, isso não cria nenhum edifício metodológico da linguagem pelo do incremento paulatino de conceitos. Mas tornar conscientes as implicações contidas nos termos conceituais também representa um “método” e, na minha opinião, um método adequado ao objeto da filosofia. Isso porque o objeto da filosofia não se resume a esclarecer reflexivamente os procedimentos das ciências. Tampouco consiste em tirar a “soma” da multiplicidade de nosso saber moderno, arredondando-a até alcançar a totalidade de uma “concepção de mundo”. É verdade que a filosofia tem a ver com a totalidade de nossa experiência de mundo e de vida, e o faz de modo diferente do que todas as outras ciências. Seu envolvimento com essa tarefa se dá nos moldes de nossa própria experiência de vida e de mundo articulada na linguagem. Estou longe de afirmar que o saber dessa (461) totalidade represente um conhecimento realmente assegurado e que não deva ser sempre de novo submetido à crítica pelo pensamento. O que não se pode é ignorar esse “saber”, seja que se expresse como sabedoria religiosa ou proverbial, como obra de arte ou como pensamento filosófico. A própria dialética de Hegel — não me refiro à sua esquematização de um método de demonstração filosófica, mas à experiência que forma a base de sua “inversão” de conceitos, que buscam compreender o todo — pertence a essas formas do auto-esclarecimento interior e de representação intersubjetiva de nossa experiência humana. Em meu livro, fiz um uso bastante vago desse modelo vago de Hegel e por isso gostaria de remeter a uma pequena e recente publicação intitulada Hegels Dialektik, Fünf hermeneutischen Studien (A dialética de Hegel — cinco estudos hermenêuticos), Tübingen, 1971, a qual contém uma explanação mais precisa, mas também uma certa justificação para essa vacuidade. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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