Desse modo, com a dissolução nominalista da lógica clássica da essência, o problema da língua entra num novo estágio. De imediato, adquire um significado positivo o fato de que se podem articular as coisas em formas diferentes (ainda que não arbitrárias), segundo suas coincidências ou diferenças. Se a relação de gênero e espécie não pode ser legitimada somente a partir da natureza das coisas — segundo o modelo dos gêneros “autênticos ” na autoconstrução da natureza viva — , mas também de um modo diferente por relação com o homem e sua soberania denominadora, então as línguas nascidas na história, a história de seus significados, como de sua gramática e sintaxe, podem fazer-se valer como formas variantes de uma lógica da experiência, de uma experiência natural, ou seja, histórica (que, por sua vez, encerra também a experiência sobrenatural). A própria coisa está clara desde sempre. A articulação de palavras e coisas, que cada língua empreende à sua maneira, representa em todos os momentos uma primeira conceitualização natural, muito distante do sistema da conceitualização científica. Guia-se de modo absoluto pelo aspecto humano das coisas, segundo o sistema de suas necessidades e interesses. O que para uma comunidade linguística é essencial em certa coisa, pode reuni-la com outras coisas, no mais talvez completamente distintas, sob a unidade de uma denominação, desde que todas elas possuam esse mesmo aspecto essencial. A denominação (impositio nominis) não corresponde, de modo algum, aos conceitos essenciais da ciência e ao seu sistema classificatório de gênero e espécies. Ao contrário, medidos sob esse padrão, eles são, frequentemente, meros acidentes, dos quais deriva-se o significado geral de uma palavra. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Da relação mundana da linguagem, segue-se seu caráter peculiar de coisa. O que vem à fala são conjunturas. Uma coisa que se comporta desse modo ou de outro. Nisso estriba-se o reconhecimento da alteridade autônoma, que pressupõe por parte do falante uma distância própria com respeito à coisa. Sobre essa distância repousa o fato de que algo possa destacar-se como conjuntura própria e converter-se em conteúdo de uma proposição, suscetível de ser entendida pelos demais. Na estrutura da conjuntura que se destaca, está dado o fato de que sempre haja nela algum componente negativo. A determi-natividade de qualquer ente consiste precisamente em ser tal coisa e não ser tal outra. Em consequência existem, por princípio, conjunturas negativas, que o pensamento grego leva em conta pela primeira vez. Já na obstinada monotonia do princípio eleático da correspondência de ser e noein o pensamento grego segue o caráter fundamental de coisa, próprio da linguagem, e, em sua superação do conceito eleático do ser, Platão reconhece que o não-ser no ser é o que, na realidade, torna possível que se fale do ente. É claro que na variada articulação do logos do eidos não podia desenvolver-se adequadamente, como já vimos, a questão do ser próprio da linguagem; tão penetrado estava o pensamento grego da objetividade da linguagem. Perseguindo a experiência natural do mundo em sua conformação linguística, o pensamento grego pensa o mundo como o ser. O que pensa em cada caso como ente destaca-se como logos, como conjuntura enunciável, a partir de um todo circundante, que constitui o horizonte do mundo da linguagem. O que desse modo se pensa como ente não é, na realidade, objeto de enunciados, mas “vem à fala em enunciados”. Com isso, ganha sua verdade, seu caráter de ser e estar aberto no pensamento humano. Desse modo, a ontologia grega se fundamenta na objetividade (Sachlichkeit) da linguagem, concebendo a linguagem a partir do enunciado. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Se retivermos isso, já não poderemos continuar confundindo a objetividade (Sachlichkeit) da linguagem com a objetividade (Objektivität) da ciência. A distância inerente à relação linguística para com o mundo não proporciona, por si mesma, e enquanto tal, esse outro gênero de objetividade que produzem as ciências naturais, eliminando os elementos subjetivos do conhecer. A distância e a objetividade da linguagem é também, evidentemente, um verdadeiro produto que não se faz por si. Já sabemos quanto contribui ao domínio de uma experiência o apreendê-la em linguagem. Com eia parece como se se pusesse distância à sua imediatez ameaçadora fulminante, como se fosse reduzida às devidas proporções, se tornasse comunicável e domesticada. No entanto, essa maneira de dominar a experiência é claramente diferente de sua elaboração pela ciência, que a objetiva e a torna disponível para fins de seu desígnio. Quando o cientista reconheceu as leis de um processo da natureza, ele recebeu algo em suas mãos e pode tentar ver se pode reconstruí-lo. Na experiência natural do mundo, tal como é cunhada linguisticamente, não há nada disso. Falar não significa, de maneira alguma, tornar coisas disponíveis e calculáveis. E não somente porque o enunciado e o juízo representam uma mera forma especial, dentro da multiplicidade do comportamento linguístico, mas porque essa experiência permanece, ela mesma, entrelaçada no comportamento vital. A ciência objetivadora considera, por isso, a conformação linguística da experiência natural do mundo como uma fonte de preconceitos. Como ensina o exemplo de Bacon, a nova ciência, com seus métodos de medição matemática, teria que abrir um espaço para seus próprios planos construtivos de investigação, precisamente contra o preconceito da linguagem e sua ingênua teleologia. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.