O fato de que Husserl tenha em vista, a todo momento, o “desempenho” da subjetividade transcendental corresponde simplesmente à tarefa da investigação fenomenológica da constituição. Mas é característico de seu verdadeiro propósito, não mais falar de consciência, nem sequer de subjetividade, mas de “vida”. Ele quer posicionar-se por trás da atualidade da consciência que intenciona, e mesmo por trás da potencialidade da co-intenção retrocedendo até a universalidade do produzido, ou seja, do constituído em sua validez. É uma intencionalidade basicamente anônima, ou seja, não produzida nominalmente por coisa alguma, através da qual constitui-se o horizonte do mundo que abarca o universo do que é objetivável pelas ciências. Husserl chama a esse conceito fenomenológico do mundo de “mundo da vida”, ou seja, o mundo em que nos introduzimos por mero viver nossa atitude natural, que, como tal, não se torna cada vez objetivo, mas que representa o solo prévio de toda experiência. Esse horizonte do mundo é pressuposto também em toda ciencia e que, por isso, é mais originário do que elas. Como fenômeno de horizonte, este “mundo” está essencialmente vinculado à subjetividade, e essa vinculação significa, ao mesmo tempo, que “tem seu ser na corrente do ‘cada vez em cada caso’” (Jeweiligkeit). O mundo da vida se encontra num movimento de constante relativização da validez. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
É claro que o mundo da vida será sempre, ao mesmo tempo, um mundo comunitário que contém a co-presença de outros. Ele é mundo pessoal, e um tal mundo pessoal está sempre pressuposto como válido na atitude natural. Porém, como se fundamenta essa validez partindo de um desempenho da subjetividade? Essa é a tarefa mais difícil que se coloca à análise fenomenológica da constituição, e Husserl esteve incansavelmante refletindo sobre os seus paradoxos. Como pode surgir no “eu puro” algo que não possua validez de objeto, mas que quer ser ele mesmo “eu”? VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Entretanto, já em Husserl se verifica um momento que de (253) fato ameaça despedaçar essa moldura. Sua posição é, na verdade, bem mais do que uma radicalização do idealismo transcendental, e para esse “mais” é característica a função que nele alcança o conceito “vida”. “Vida” não é meramente o “ir vivendo” da atitude natural. “Vida” é também e não menos a subjetividade transcendentalmente reduzida, que é a fonte de todas as objetivações. Assim, sob o título “vida” encontra-se o que Husserl destaca como sua contribuição própria à crítica da ingenuidade objetivista de toda a filosofia precedente. Aos seus olhos, ela consiste em haver revelado o caráter de aparência da controvérsia epistemológica habitual entre idealismo e realismo e, em seu lugar, em haver tematizado a atribuição interna de subjetividade e objetividade. É assim que se esclarece a formulação: “vida produtiva”. “A consideração radical do mundo é pura e sistemática consideração interior da subjetividade que se exterioriza a si mesma no ‘fora’. É como na unidade de um organismo vivo, o qual se pode observar e analisar de fora, mas que somente se pode compreender quando se retrocede até suas raízes ocultas…” Também o comportamento mundano do sujeito, deste modo, não é compreensível nas vivências conscientes e em sua intencionalidade, mas nos “desempenhos” anônimos da vida. A comparação do organismo, que Husserl aqui utiliza, é mais do que uma comparação. Como ele diz expressamente, quer ser tomado ao pé da letra. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.