GA7:50-52 – a ciência moderna é a teoria do real

Como teoria do real (Theorie des Wirklichen), a ciência moderna não é, pois, nada de espontâneo e natural. Não se trata de um simples feito do homem e nem de uma imposição do real. Ao contrário, a vigência do real carece da essência da ciência quando se ex-põe na objetidade do real 1. Este momento, como qualquer outro semelhante, é um mistério. Se os grandes pensamentos sempre chegam com os pés do silêncio, muito mais ainda é o que acontece com a transformação da vigência de todo vigente.

A teoria assegura para si uma região do real, como domínio de seus objetos 2. O caráter regional da objetidade 3 aparece na antecipação das possibilidades de pesquisa. Todo novo fenômeno numa área da ciência será processado até enquadrar-se no domínio decisivo dos objetos da respectiva teoria. Trata-se de um domínio que, às vezes, se transforma, enquanto a objetidade (Gegenständigkeit), como tal, permanece imutável, em suas características básicas. Numa concepção rigorosa, a essência do “objetivo” propicia o fundamento para se predeterminar comportamento e procedimento 4. Há teoria pura quando um objetivo determina por si mesmo a teoria. Esta determinação provém da objetidade do real vigente. Abandonar esta objetidade equivaleria a negar totalmente a essência da técnica. Tal é o sentido, por exemplo, da frase de que a física de hoje não abole e elimina a física clássica de Newton e Galileu, apenas restringe-lhe o âmbito de validade. Esta restrição confirma também a objetidade decisiva para a teoria da natureza. Segundo ela, a natureza se oferece à representação num sistema de movimento espaço-temporal, de alguma forma, previsível pelo cálculo.

Porque a ciência moderna é uma teoria neste sentido, adquire importância decisiva em toda a sua observação o modo de tratar da ciência, ou seja, a maneira de ela proceder, em suas pesquisas, com vistas ao asseguramento processador, numa palavra, o seu método (Methode). Uma frase de Max Planck diz: “real é o que se pode medir”5. Isso significa: a decisão do que deve valer, como conhecimento certo para a ciência, no caso para a física, depende da possibilidade de se medir e mensurar a natureza, dada em sua objetidade e, em consequência, das possibilidades dos métodos e procedimentos de medida e quantificação. Esta frase de Max Planck só é correta por expressar algo que pertence à essência da ciência moderna e não apenas das ciências naturais. O cálculo é o procedimento assegurador e processador de toda teoria do real. Não se deve, porém, entender cálculo em sentido restrito de se operar com números. Em sentido essencial e amplo, calcular significa contar com alguma coisa, ou seja, levá-la em consideração e observá-la, ter expectativas, esperar dela alguma outra coisa. Neste sentido, toda objetivação do real é um cálculo, quer corra atrás dos efeitos e suas causas, numa explicação causal, quer, enfim, assegure em seus fundamentos um sistema de relações e ordenamentos. Também a matemática não é um cálculo com números para se obter resultados quantitativos. A matemática é um cálculo que, em toda parte, espera chegar à equivalência das relações entre as ordens por meio de equações. E por isso mesmo “conta” antecipadamente com uma equação fundamental para todas as ordens possíveis.

Porque, como teoria do real, a ciência moderna se apoia no primado do método, por isso mesmo, para assegurar-se dos domínios de seus objetos, ela tem de separar as regiões do real umas das outras e enquadrá-las em disciplinas especiais, isto é, em especialidades. A teoria do real se cumpre necessariamente em disciplinas, sendo sempre especializações e especialidades.

A pesquisa de uma região do real deve dedicar-se, com seu esforço, à especificidade própria de seus objetos. É esta dedicação que transforma o procedimento da ciência disciplinada em pesquisa especializada. Por isso, a especialização não pode ser uma degeneração obtusa ou um fenômeno de decadência da ciência moderna. A especialização também não é um mal necessário. É uma consequência necessária e positiva da essência da ciência moderna.

A delimitação dos domínios de objetos e seu enquadramento em áreas de especialização não esgarçam as ciências, mas as presenteiam com uma troca entre suas fronteiras, desenhando-lhes regiões limítrofes e fronteiriças. É destas que surge o impulso científico que desencadeia questionamentos novos e muitas vezes decisivos. Trata-se de um fato conhecido. Seu fundamento, porém, continua misterioso, como toda a essência da ciência moderna.

Acabamos assim de caracterizar a essência da ciência moderna, esclarecendo a frase “a ciência moderna é a teoria do real”, em seus dois termos principais. Foi uma preparação para o segundo passo em que perguntamos: “que conjuntura invisível se esconde na essência da ciência?”

  1. Wohl dagegen wird das Wesen der Wissenschaft durch das Anwesen des Anwesenden in dem Augenblick benötigt, da sich das Anwesen in die Gegenständigkeit des Wirklichen herausstellt[]
  2. Bezirk des Wirklichen als ihr Gegenstandsgebiet[]
  3. Der Gebietscharakter” der Gegenständigkeit[]
  4. Verhalten und Vorgehen[]
  5. Wirklich ist, was sich messen läßt[]