nossa tradução
É verdade que desconfio um pouco da noção de natureza humana, e pela seguinte razão: acredito que dos conceitos ou noções que uma ciência pode usar, nem todos têm o mesmo grau de elaboração e que, em geral, não têm a mesma função nem o mesmo tipo de uso possível no discurso científico. Vamos tomar o exemplo da biologia. Você encontrará conceitos com uma função classificadora, conceitos com uma função diferenciadora e conceitos com uma função analítica: alguns deles nos permitem caracterizar objetos, por exemplo, o de “tecido”; outros isolar elementos, como o de “característica hereditária”; outros fixar relações, como a de “reflexo”. Ao mesmo tempo, existem elementos que desempenham um papel no discurso e nas regras internas da prática do raciocínio. Mas também existem noções “periféricas”, aquelas pelas quais a prática científica se designa, se diferencia em relação a outras práticas, delimita seu domínio de objetos e designa o que considera ser a totalidade de suas tarefas futuras. A noção de vida desempenhou esse papel em certa medida na biologia durante um certo período.
Nos séculos XVII e XVIII, a noção de vida era pouco usada no estudo da natureza: classificava-se os entes naturais, vivos ou não-vivos, em um vasto quadro hierárquico que ia dos minerais ao homem; o intervalo entre os minerais e as plantas ou animais era relativamente indeciso; epistemologicamente, era importante apenas fixar suas posições de uma vez por todas de uma maneira indiscutível.
No final do século XVIII, a descrição e análise desses entes naturais mostrou, através do uso de instrumentos mais altamente aperfeiçoados e das mais recentes técnicas, todo um domínio de objetos, todo um campo de relações e processos que nos permitiram definir a especificidade da biologia no conhecimento da natureza. Pode-se dizer que a pesquisa sobre a vida finalmente se constituiu na ciência biológica? O conceito de vida foi responsável pela organização do conhecimento biológico? Acho que não. Parece-me mais provável que as transformações do conhecimento biológico no final do século XVIII foram demonstradas, por um lado, por toda uma série de novos conceitos para uso no discurso científico e, por outro lado, deram surgimento a uma noção como esta de vida, que nos permitiu designar, delimitar e situar um certo tipo de discurso científico, entre outras coisas. Eu diria que a noção de vida não é um conceito científico; tem sido um indicador epistemológico do qual as funções de classificação, delimitação e outras tiveram um efeito nas discussões científicas, e não no que elas estavam falando.
Bem, parece-me que a noção de natureza humana é do mesmo tipo. Não foi pelo estudo da natureza humana que os linguistas descobriram as leis da mutação consonante, ou Freud, os princípios da análise dos sonhos, ou os antropólogos culturais, a estrutura dos mitos. Na história do conhecimento, a noção de natureza humana me parece ter desempenhado principalmente o papel de um indicador epistemológico para designar certos tipos de discurso em relação a ou em oposição à teologia, biologia ou história. Eu acharia difícil ver nisso um conceito científico.
It is true that I mistrust the notion of human nature a little, and for the following reason: I believe that of the concepts or notions which a science can use, not all have the same degree of elaboration, and that in general they have neither the same function nor the same type of possible use in scientific discourse. Let’s take the example of biology. You will find concepts with a classifying function, concepts with a differentiating function, and concepts with an analytical function: some of them enable us to characterize objects, for example that of “tissue”; others to isolate elements, like that of “hereditary feature”; others to fix relations, such as that of “reflex.” There are at the same time elements which play a role in the discourse and in the internal rules of the reasoning practice. But there also exist “peripheral” notions, those by which scientific practice designates itself, differentiates itself in relation to other practices, delimits its domain of objects, and designates what it considers to be the totality of its future tasks. The notion of life played this role to some extent in biology during a certain period.
In the seventeenth and eighteenth centuries, the notion of life was hardly used in studying nature: one classified natural beings, whether living or non-living, in a vast hierarchical tableau which went from minerals to man; the break between the minerals and the plants or animals was relatively undecided; epistemologically it was only important to fix their positions once and for all in an indisputable way.
At the end of the eighteenth century, the description and analysis of these natural beings showed, through the use of more highly perfected instruments and the latest techniques, an entire domain of objects, an entire field of relations and processes which have enabled us to define the specificity of biology in the knowledge of nature. Can one say that research into life has finally constituted itself in biological science? Has the concept of life been responsible for the organization of biological knowledge? I don’t think so. It seems to me more likely that the transformations of biological knowledge at the end of the eighteenth century were demonstrated on one hand by a whole series of new concepts for use in scientific discourse and on the other hand gave rise to a notion like that of life which has enabled us to designate, to delimit, and to situate a certain type of scientific discourse, among other things. I would say that the notion of life is not a scientific concept; it has been an epistemological indicator of which the classifying, delimiting, and other functions had an effect on scientific discussions, and not on what they were talking about.
Well, it seems to me that the notion of human nature is of the same type. It was not by studying human nature that linguists discovered the laws of consonant mutation, or Freud the principles of the analysis of dreams, or cultural anthropologists the structure of myths. In the history of knowledge, the notion of human nature seems to me mainly to have played the role of an epistemological indicator to designate certain types of discourse in relation to or in opposition to theology or biology or history. I would find it difficult to see in this a scientific concept.