Flusser (2004:49-51) – intelecto e dúvida

Certos exercícios do Ioga ultrapassam, em radicalidade, as meditações cartesianas. Revelam vivencialmente, não que penso, mas que tenho pensamentos. Posso, nesses exercícios, eliminar os pensamentos, mas continuarei sendo. Com efeito, o método cartesiano prova a existência de pensamentos, não do eu que pensa. Há uma fé humanista no “eu” que se infiltra, sub-repticiamente, no argumento cartesiano, sem jamais ser duvidada. Os exercícios do Ioga interessam, neste contexto, apenas enquanto proporcionam um ponto de vista sobre os pensamentos. É o ponto de vista de dentro para fora. Os pensamentos se apresentam como tecido entreposto entre o “eu” e o mundo dos fenômenos externos. Esse tecido tapa, apresenta e representa (“vorstellt” na palavra de Schopenhauer) o mundo externo. Chamemos esse tecido de “intelecto”. Podemos definir o intelecto como o campo no qual ocorrem pensamentos. Esse campo está ligado, de certa forma, com o “eu” que tem pensamentos, e com o mundo a quem os pensamentos representam. Pelo menos essa é nossa fé ingênua, sem a qual o intelecto não teria significado. Essas ligações são justamente o significado do intelecto. Mas essas ligações não podem ser pensamentos, dada a nossa definição do intelecto. Do contrário, “eu” e “mundo externo” seriam parte do intelecto. As ligações que unem o intelecto ao “eu” e ao “mundo externo” não são, portanto, pensamentos. “Eu” e “mundo externo” são impensáveis. Sendo (49) impensáveis são, paradoxalmente, indubitáveis. Serão, em consequência, eliminados do presente argumento.

O intelecto definido como campo no qual ocorrem pensamentos é uma visão que resultou de um ponto de vista. É um ponto de vista externo ao intelecto. O intelecto é, deste ponto de vista, objeto. Pode ser investigado “objetivamente”. Tornou-se despsicologizado. Os pensamentos que compõem o intelecto não são vivências, mas objetos de conhecimento. Uma dificuldade ontológica se esconde neste ponto de vista. Pensamentos se tornam objetos de pensamentos. Essa dificuldade é consequência da dúvida da dúvida que fundamenta o ponto de vista.

Passemos, relutantes, por cima dessa dificuldade.

O intelecto como campo no qual ocorrem pensamentos torna a pergunta “o que é intelecto?” pergunta sem significado. Um campo não é um algo. E um como algo se dá. O campo gravitacional da Terra é como se comportam corpos na vizinhança da Terra. O intelecto é como pensamentos ocorrem. Para ocorrerem, os pensamentos devem ocorrer de uma forma ou outra. O intelecto é essa “forma ou outra”. Tendo negado dignidade ontológica ao intelecto, dedicaremos a nossa atenção aos pensamentos.

Os pensamentos como objetos são formações complexas. Consistem de elementos chamados “conceitos” ligados entre si por elos chamados “regras”. Pelo menos é assim que pensamentos ocorrem em campos chamados “intelectos do nosso tipo”.

Outros tipos de intelectos podem ser imaginados. Por exemplo: intelectos do tipo chinês ou kwakiutl. Nesses intelectos os pensamentos talvez não consistam de conceitos. Restringiremos o argumento ao nosso tipo de intelecto.

Os pensamentos como conceitos ligados por regras são processos. Discorrem. Dirigem-se para uma meta. A meta é chamada “significado”. Um pensamento significativo é um pensamento que alcançou sua meta. Pensamentos (50) incompletos são insignificativos. Alcançado o significado, surge pensamento novo. Pensamentos significativos são produtores de pensamentos novos. O significado do pensamento é outro pensamento. Pensamentos sem significado não produzem pensamentos novos. O critério do significado é a capacidade para a produção de pensamentos. Um pensamento significativo pode produzir mais que um pensamento novo.

Quanto mais significativo o pensamento, tanto maior o número de pensamentos novos por ele produzidos. Formam-se, assim, cadeias de pensamentos, chamadas “argumentos”. Estes discorrem, por sua vez, em busca de significado, do qual o significado do pensamento individual é apenas um aspecto subalterno. A soma dos argumentos forma a totalidade do discurso. Este flui, por sua vez, em direção de um significado. Pelo próprio caráter do processo, esse significado é inalcançável. Está ele naquele “eu” e “mundo externo” que eliminamos do nosso argumento. Pelo seu próprio caráter, portanto, é o discurso um processo frustrado. Carece de ulterior significado. Isto não invalida, no entanto, os significados parciais dos pensamentos e dos argumentos. O seu significado está no discurso, e não no além dele. Somente aqueles que não se conformam com essa limitação imposta pelo campo que é o intelecto decaem no antiintelectualismo. No silêncio wittgensteiniano.

A procura de significado é sinônimo de “dúvida”, e a dúvida é portanto o declive do discurso. É a força que propele o discurso. O significado parcial é a superação parcial da dúvida, e o significado total inalcançável é a garantia de ser a dúvida inesgotável. É a garantia da continuidade do discurso. Ao discorrer, propelido pela dúvida, o discurso se ramifica e amplia. O número dos significados parciais alcançados cresce. Podemos portanto resumir o resultado até aqui alcançado: O intelecto é o campo crescente da dúvida em discurso.