A Sociologia do Conhecimento, enquanto estuda as relações entre o conhecimento que temos dos outros e as particulares condições sociais e culturais, já havia pressentido o problema da relatividade do noso ser-com-o-outro. A forma segundo a qual apreendemos e vivemos a realidade do outro e, concomitantemente, (238) os comportamentos decorrentes dessa particular apreensão variam extremamente através do tempo. Basta citar como exemplo o fenômeno das relações de parentesco e dos laços familiares que constituem sem dúvida a mais incisiva forma do relacionar-se com o outro. Pois bem, o teor dessas relações e o papel que assume cada membro da família dependem da mítica da comunidade e da concepção mítico-religiosa que governa os laços sociais. O mito condiciona e constitui todos os laços possíveis e todos os comportamentos que ligam os homens entre si.
A formulação do problema das relações inter-humanas, com base em sua fundamentação ontológica, vai entretanto muito além do ponto de vista da Sociologia do Conhecimento. Trata-se aqui da origem ontológica das possibilidades humanas em seu conjunto e, portanto, de um problema que transcende qualquer investigação científica. Como vimos acima, segundo o ponto de vista que assumimos, o homem é um manifestar-se que nos remete às potências instituidoras de sua possibilidade. Esse manifestar-se, porém, dá-se como um plexo de comportamentos e de ações inter-humanas, ao eclodir no homem. Assim, pois, o homem é o manifestar-se mesmo dessas possibilidades relacionais e esse intercurso das consciências. Esse campo, entretanto, é aberto e fundado por algo que convoca o homem ao Ser, ou melhor, por algo que desencadeia aquelas possibilidades de realização que chamamos homem. O ser-com-o-outro depende portanto de uma Abertura que traça e constitui o sistema dos nexos interindividuais. (FERREIRA DA SILVA, Vicente. Transcendência do Mundo. São Paulo: É Realizações, 2010, p. 238-239)