Fédier (2012:51-52) – a obra

O que aparece na mesa é, como diz Platão, a sua [εἶδος->eidos]-mesa. Mas a [σοφία->sophia] é uma modalidade de saber-fazer que conduz a algo muito mais aberto. Então como é que algo que em princípio é muito claramente [poiético->poiesis] pode ter um lado [praxético->praxis]? Esta é uma característica da condição humana. A própria vida, [βίος->bios], não pode ser feita com outra coisa em vista. Há um elemento inevitável de [πρᾶξις->praxis]. É este elemento humano que traz a [ποίησις->poiesis] de volta à πρᾶξις. Mesmo aquele que é obrigado a trabalhar para viver é levado por todos os lados a esta possibilidade de fazer o que faz por fazê-lo. A felicidade é a possibilidade de fazermos o que fazemos [52] porque o queremos fazer. Somos sempre obrigados a fazer isto para fazer aquilo; mas há um outro lado que é igualmente inevitável: a possibilidade de os seres humanos fazerem algo simplesmente por fazê-lo.

Conta-se que um dia o imperador Carlos V, que estava a ser retratado por Ticiano, se abaixou para pegar o pincel que o velho pintor tinha deixado cair. Trata-se de uma inversão da relação social. O imperador o deixa ir até o fim de sua obra. No mundo da Idade Média [tudo numa catedral é perfeito, mesmo nos lugares mais inacessíveis: os artistas estão sob o olhar constante do Criador (o Amante)], distinguem-se as artes liberais das artes servis. As artes técnicas não são livres quanto à sua finalidade: os sapatos têm de ser feitos. Mas a escultura é uma arte liberal, porque se fizermos uma estátua, de Zeus por exemplo, temos uma liberdade muito maior em relação ao nosso objetivo — a liberdade não é uma licença, mas uma relação diferente com a lei. O passeio é livre porque é um passeio. Do mesmo modo, uma obra de arte é a oportunidade de estar numa obra de arte: o ser esculpido desaparece no que aparece na “escultura”. Um sapato, por outro lado, é justamente chamado de “sapato”, porque um sapato é tanto mais um sapato quanto melhor lhe serve. O que é a obra de escultura? A obra de arte é a aplicação da verdade”, diz Heidegger em A Origem da Obra de Arte. No sapato, a aplicação da verdade é bastante limitada: é uma questão de estar bem calçado. A obra de arte, pelo contrário, implementa uma verdade muito mais vasta. A escultura, sem ser uma πρᾶξις, é assim uma estrutura de [τέχνη->techne] no seio da qual encontramos elementos de πρᾶξις.

[FÉDIER, F. L’humanisme en question: Pour aborder la lecture de la “Lettre sur l’humanisme” de Martin Heidegger. Paris: Les Éditions du Cerf, 2012]