Eudoro de Sousa (MHM:27-28) – Homem – Recusa

1. Se, de chofre e à queima-roupa, me desfechassem a mais preocupante, a mais inquietante de todas as questões: «Que é o homem?», creio que respondería com desassombro e sem hesitação: «O homem é o animal que se recusa a aceitar o que gratuitamente lhe deram e gratuitamente lhe dão.» Não me perguntem agora quem dá o que o homem recusa. Só importa a recusa da gratuidade. O homem se lhe recusa; o homem é a própria recusa, antes de ser o asno o que quer que seja ou o que quer que venha a ser. Pelo menos, ao que me parece, é esta a que está antes de qualquer outra determinação do homem, de todas as suas possíveis ou realizadas determinações. Que dela decorrem, uma a uma, todas as demais — as que se nos deparam em todos os livros de antropologia e de história que se leiam da única maneira de ler, as que se nos oferecem através de uma leitura interrogante. A Recusa está no fundo do abismo sem fundo, aonde tentamos descer, em busca do ser-origem do homem, que mora na intimidade de qualquer dos homens. No entanto, se falamos absurdamente do «fundo de um abismo sem fundo», é porque queremos deixar em aberto a questão de averiguar se a tal Recusa está efectivamente no término (ou no início) do pensar o ser do homem. Talvez mais, muito mais e mais além houvesse que perguntar; que perguntar, sobretudo, haveria se este pensar não tem que descer ao limite do pensável, ao liminar do impensável, e que transpô-lo decididamente, ou se não haverá que deter-nos no meio da escarpa, da escarpa que não tem «meio» se o abismo não tem «fundo». Mas para baixo do meio — que o seja ou não seja — há o mito: Adão recusou-se a prosseguir vivendo no Paraíso. Não importa que não (27) seja esta a letra exacta do relato mítico: tudo veio a passar-se como se assim fosse. Aqui, a referência ao Primeiro Homem faz-se só modo de apontar para o que do homem parece característica primeira, e semelhante característica mostra-se-nos como ilusão de um orgulhoso triunfo sobre o Exílio. A Recusa do Paraíso é, pois, a versão já humana do próprio acontecer humano, a primeira afirmação do homem, que é um querer firmar-se ele em si mesmo.

2. Um homem recusa-se a habitar em casa que não é a sua, a viver em mundo que não é o seu? A maneira mais fácil de pensar a Recusa é imaginar que ele não aceita ou não quer ter como seu senão o que fez por suas próprias mãos. Nenhum reparo nos merecería o fascínio da operosidade construtiva se por despercebido passasse que necessário antecedente de todo o fazer é um desfazer. Não sei de coisa que se faça sem que outra ou outras coisas se desfaçam, não sei de construção que não suceda à destruição. É certo que o presente se vinga do passado, como o futuro se vingará do presente: o presente, destruindo o que no passado se fez, e o futuro, destruindo o que no presente se faz. Mas há um ponto fenomenologicamente bem determinado, no circuito em que o futuro do futuro se reúne ao passado do passado: é o que representa uma destruição do que o homem não fez nem poderia fazer — e essa atinge as dimensões do sacrilégio. Efectivamente, o primeiro episódio da Recusa, primeiro em qualquer dos dramas, cujos argumentos são variantes do tema da «hominização», consiste em o homem verificar que tão mal à vontade se sente na Natureza quanto Adão se sentira no Paraíso. O Exílio Adâmico é mito que corre paralelamente à história, embora Paraíso e Natureza não sejam o mesmo, já que esta não volta sempre para o homem a sua face benéfica. Adão pôde sair do Paraíso, mas o homem não pode exilar-se da Natureza. Destruí-la é a precaríssima solução do insolúvel, pois, consumada, lhe custará a vida. Mas Natureza não é o seu mundo…