Eudoro de Sousa (HCSM:191-192) – mundo mitológico e mundo de homem-natureza

Que relação haverá entre o mundo mitológico (com tudo o que ele contém, ou continha, num horizonte aparentemente perdido) e o mundo em que existe Deus, o Homem e a Natureza? Esta era a segunda pergunta.

O mundo em que nós vivemos e, sobretudo, aquele que nós pensamos, não parece que ainda seja o mundo da mitologia (a não ser que contemos com aquele que a alguns é dado entrever, por distracção, em sonhos sonhados no limiar da vigília, ou através do êxtase natural ou provocado), mas sim, o da filosofia ou daquele subproduto seu, a que se dá o nome de ciência, cuja origem (não o início) deve ser o mais rigorosamente datado pelas consequências, distorcidas ou não, do ensino socrático, o que bem se situa nas cumeadas da sofistica, portanto, da época em que foram estabelecidos os fundamentos de uma primeira antropologia ou um rudimento das ciências humanas. A antropologia, ou ciência do Homem — que surgiu por uma daquelas fulgurações ofuscantes do Ser, de Deus ou do Absoluto, mais precisamente, aquela que ainda perdura (191) como o mito, dificilmente expressável, do Homem —, determinou uma reformulação da fisiologia, ou teoria da natureza, e a formação de uma teologia, ou doutrina da sobrenatureza e do sobre-humano.

A mitologia grega, lembrando o que acima ficou escrito, era mitologia emergente da religião grega, isto é, de uma religião que, a posteriori, verificamos que lhe era essencial o «vir a ser uma filosofia», aquela que, por gesto gratuito da Realidade transcendente, se desenvolveu a partir da antropologia socrática. Lembremos também que, sendo a mitologia, mitologia de uma religião a que era essencial o vir a ser uma filosofia, já era, ela mesma, uma filosofia. No entanto, esta filosofia que a mitologia foi, não era, como a nossa filosofia, uma filosofia que começou por ser proeminentemente antropológica. Não; a mitologia grega era uma física, queremos dizer, uma imagem da physis definida ou objectivada pelo Homem — em suma, a Natureza dos filósofos que viriam depois de Sócrates.

Por conseguinte, a relação que procuramos, entre o mundo mitológico, isto é, entre o mundo em que os mitos acontecem e o mundo em que eles não podem acontecer porque nele existem, ou só existem, o Homem e a Natureza, posto fora um Deus que espera tornar–se em pensamento supérfluo e importuno — essa relação, dizemos, estabelecer-se-ia simplesmente através de outra relação que se proponha entre a física que a mitologia foi e a física que na filosofia há.

Entre as duas físicas, a mitológica e a filosófica, situa-se a filosofia dos pré-socráticos; situa-se historicamente entre as duas; ou melhor, foi Aristóteles que situou, entre a física dos «teólogos» e a física dos antropólogos, uma teoria da natureza que já não é inteiramente mitológica mas ainda não é puramente filosófica. Nesta situação da fisiologia dos pré-socráticos, entre o «já não ser mito» e o «ainda não ser ciência», é que nos podería surgir em plena luz da verdade, aquela relação que procuramos, entre a física que a mitologia foi e a física que na filosofia haverá.

Assinalemos na literatura historiográfica os seguintes pontos: 1) para os antigos, todos os pré-socráticos são físicos, isto é, todos teriam escrito livros «acerca da natureza» (peri physeos); 2) quando Aristóteles afirma que a doutrina física de Tales de certo modo depende dos theologoi, quer dizer, daqueles que filosofaram «tomando a Noite como ponto de partida» (arkhe), é claro que ele aponta para uma filosofia que implica uma teologia (mitologia) ou que ainda está implicada numa teologia; 3) daí resulta que, para os historiadores antigos, a fisiologia dos pré-socráticos também seja teologia, isto é que a doutrina da natureza também fosse uma (192) teoria da divindade; ou ainda, que teria havido uma só doutrina concernente ao mesmo ser, o qual se revelava através do que era, ora como divindade, ora como natureza, ora como natureza-divindade.