(…) “A história de uma vida, a “biografia psicanalítica”, não é propriamente uma história. No fundo, ela é uma corrente causal-naturalística, uma corrente de causas e efeitos e, ainda por cima, uma corrente construída” (GA89). Aqui, Heidegger remete a uma parte de Ser e tempo, que trata da historicidade (Geschichtlichkeit).
Sabemos que a analítica existencial fica de pé ou cai na possibilidade de defendermos a historicidade do ser humano. Esse tema procura, basicamente, demonstrar as diversas dimensões do ser humano enquanto ser temporal, mas pressupondo, com isso, que essa temporalidade (Zeitlichkeit) seja manifesta apenas no universo da historicidade. Quer dizer, que o ser humano seja um ser histórico certamente é algo que ou se aceita e, a partir daí, faz-se afirmações coerentes sobre esse ser, ou, então, recusa-se esta afirmação, e a tendência que se segue é a cada vez maior redução das explicações sobre o ser humano a um campo puramente natural das ciências empíricas. Sabemos muito bem que o problema da História, enquanto um elemento ligado ao indivíduo, ou o caráter da historicidade, é algo extremamente discutível. Heidegger, porém, deu-lhe uma justificativa, localizada no capítulo quinto da segunda seção de Ser e tempo, intitulado “Temporalidade e historicidade”, uma descrição fenomenológica altamente convincente. O ser humano está na História, (129) adverte Heidegger, mas isso não é o que lhe dá a característica fundamental de seu ser; somente porque ele existe historicamente, e ele só pode existir assim, é que o ser humano é temporal. Ou seja, ele não é temporal porque está na História, mas como ele existe de um modo histórico, é temporal. Com isso, Heidegger põe a condição humana na frente de todas as possibilidades de enumeração, medição, exame a partir de categorias como causa e efeito que, agora, são postas em uma dimensão secundária. Há uma estrutura básica, que é a estrutura da historicidade do Dasein, sem a qual não haveria a condição da temporalidade. O ser humano, portanto, tem um nível de acontecimento (Ereignis), isto é, um nível do “dar-se fenomenológico”, cujo modo de ser no mundo é totalmente diferente da tradição metafísica, que descrevia o ser humano como um animal racional em meio aos entes naturais e dava-lhe, com isso, uma característica especial — a razão — que lhe possibilitava compreender os entes naturais e a autocompreensão. O fato de o ser humano ter esse caráter histórico, ou ser “historial”, lhe confere uma espécie de multiplicidade de significados difícil de ser apanhada por meio de um único termo ou de algo que poderia expressar privilegiadamente essa condição. Por exemplo, a própria noção de tempo é desenvolvida por Heidegger em três dimensões temporais (Ekstase) — a tríplice estrutura do cuidado (Sorge), assim como ele as descreve —, e isto é incorporado na questão da historicidade.
Agora, o fato de o ser humano poder ser marcado por esse caráter histórico, ou esse acontecer, somente é possível porque ele é histórico em sua dimensão mais profunda, em seu caráter de ser. Assim, decisões, circunstâncias, dúvidas, acontecimentos, isto é, a vida, assim como poderíamos resumir tudo isso, somente é possível porque há esse específico caráter de historicidade. Não podemos, contudo, perceber esse caráter da historicidade de maneira rasa ou quase natural, isto é, ligando-o a acontecimentos passados; também o ser humano tem esse caráter de passado, a faticidade, que lhe é fundamental, porém os elementos da historicidade não são exclusivos; estes estão situados desde a estrutura fundamental do Dasein, que é sempre tríplice. Um dos modos específicos dessa estrutura tríplice é a faticidade, (130) o já-sempre-ter-estado-aí-no-mundo, mesmo antes de uma possível reflexão do indivíduo. Esse sempre ter estado, no entanto, faz com que o ter-sido não seja algo que já passou; ele é algo que não se coagula simplesmente em uma realidade de passado. Há uma espécie de contemporaneidade ou cooriginariedade com o futuro. Não é simples de pensar o ser humano a partir de uma estrutura fundamental como a historicidade por causa disso. Durante as exposições que realizei até agora, resisti em utilizar esse lado da historicidade do ser humano, porque ele parece não caber na discussão das psicoterapias em geral ou, mesmo, na concepção da Psicanálise por Freud e no posterior desenvolvimento de Lacan. Tem-se a impressão de que há aí algo que não se articula, que não se equilibra nas teorias.