Mas o que é que “sensível” ou “sensibilidade” significam aqui? Purificados de todo o conhecimento empírico, ou seja, sensorial, e remetidos para a imaginação transcendental, estes termos referem-se à forma do tempo (a forma a priori de todos os objetos dos sentidos em geral), tal como se realiza no ek-stasis original constitutivo da imaginação e da sua visão pura, “na apresentação sensível” da transcendência, horizonte original de todo o conhecimento possível. Mas a sensibilidade transcendental deve ainda ser purificada de todo o sentimento interno para acceder ao puro projetar para, ao puro “ob-jetar”, que define a imaginação e o seu poder de transcendência. “O ato puro da intuição”, diz Heidegger, “é, quanto à substância da sua essência, pura imaginação”. “A intuição pura”, prossegue, “(…) é, por sua natureza, pura imaginação, isto é, uma imaginação que se dá espontaneamente, ao formá-las, visões (imagens)” (GA3FR:200). Assim, a sensibilidade atinge a sua essência quando se eleva à imaginação e, como o próprio Heidegger afirma, se reduz a ela. “O estabelecimento kantiano do fundamento… torna-se mais original quando não se limita a aceitar o fundamento estabelecido, mas revela como esta raiz é a raiz das duas raízes. Ora, isto significa nada menos do que reduzir a intuição e o pensamento puros à imaginação transcendental” (GA3FR:193). “Ao mesmo tempo que se realiza a redução da intuição e do pensamento à imaginação transcendental, apercebemo-nos de que, através desta redução, a imaginação transcendental se manifesta cada vez mais como uma (41) possibilidade estrutural de transcendência” (GA3FR:212). Em que se baseia o privilégio atribuído à ordem do sensível e do imaginário? No privilégio da transcendência, a sua estrutura comum e essencial. E é a transcendência, enquanto estrutura fundadora, que merece o título “ontológico” atribuído à sensibilidade e à imaginação. A redução “ontológica” da sensibilidade à imaginação e da imaginação à transcendência não significa outra coisa senão a redução de ambas ao conhecimento objetivo, a um poder de representação. Assim, longe de dominar a razão pura e o seu saber abstrato, a chamada “razão sensível pura” de Heidegger constitui o seu próprio princípio. Além disso, o carácter “ontológico” do seu poder não significa de modo algum o ser ou o logos do ser, mas a essência do saber enquanto tal, isto é, uma forma – uma essência que só tem a natureza de uma forma. A valorização da imaginação por Heidegger conduz ao mesmo resultado que denunciamos acima: à assimilação, mas a um nível superior – assimilação suprema – da ordem sensível das impressões e das imagens à ordem intelectual do conhecimento e das suas representações. A ascensão ao “domínio de origem” para além do mundo empírico conduz irreprimivelmente a este mundo, pela força que impele a transcendência para os objetos e os entes. Em Kant e o Problema da Metafísica (GA3), a gênese da essência íntima da sensibilidade e da imaginação obedece, de fato, à teleologia do conhecimento objetivo, e acaba por subordinar essa essência àquilo a que Schopenhauer chamou “o mundo da representação”. O princípio, ou melhor, o pressuposto que comanda o estabelecimento do fundamento não é, mais uma vez, senão o monismo ontológico: a redução de toda a manifestação (sensível, imaginativa, conceitual; teórica e mesmo prática) à manifestação objetiva, uma redução que assume aqui talvez o seu carácter mais radical devido à profundidade do objetivo metafísico do filósofo de Friburgo.
(DUFOUR-KOWALSKA, G. L’art et la sensibilité: de Kant à Michel Henry. Paris: J. Vrin, 1996)