Dufour-Kowalska (1996:37-38) – tempo originário

A base da transcendência, o conteúdo fenomenológico original do horizonte da objetividade, a condição de todo o conhecimento, não é outra coisa senão o tempo. É o tempo, diz Heidegger, “que dá ao horizonte o carácter de uma abertura previamente circunscrita. Torna perceptível ao ser finito o carácter opositivo da objetividade, um carácter que pertence à finitude do ato de orientação através do qual se realiza a transcendência” (GA3FR:166).

O tempo originário domina tanto a intuição como o entendimento. O entendimento é relativo à intuição, que por sua vez é relativa ao tempo, e dentro do tempo à imaginação transcendental. “O que é representado no pensamento puro é necessariamente dado (no esquematismo) numa forma intuitiva na imagem pura do tempo” (Ibid). É sobre o fundo do tempo que se constituem as quatro classes de categorias do entendimento (a quantidade corresponde à série do tempo; a qualidade ao conteúdo do tempo; a relação à ordem do tempo; a modalidade à totalidade do tempo). É através do tempo, e não apenas no tempo, que a intuição é o que é: a recepção pelo sujeito de um ente que não é ele próprio, que lhe é dado. O tempo fornece assim a solução para o problema metafísico fundamental, o problema da síntese do sujeito com “o totalmente outro”, com o ente que se lhe oferece. “É (38) o tempo, na medida em que fornece um dom a priori, que confere imediatamente à transcendência o carácter de uma oferta perceptível” (Ibid).

O desvelamento do tempo originário marca a etapa final da génese heideggeriana da essência da fenomenalidade, o fundamento de toda a experiência – a etapa final daquilo a que Heidegger chamou no início do seu comentário “o estabelecimento do fundamento da metafísica”. Este estabelecimento obedece, como acabámos de mostrar, à seguinte ordem de razões: o desvendamento da transcendência a partir da recetividade essencial do sujeito conhecedor (ela própria revelada na intuição, “o primeiro ato de representar”); 2. a elucidação da fenomenalidade originária desta estrutura no esquematismo da imaginação transcendental; 3. a determinação do seu conteúdo fenomenológico originário, que não é outra coisa senão o tempo. O próprio Heidegger resume este processo nos seguintes termos: “O estabelecimento do fundamento da metafísica conduz à imaginação transcendental. Esta constitui a raiz comum dos dois stocks que são a sensibilidade e o entendimento. Torna assim possível a unidade original da síntese ontológica. Esta raiz está ela própria plantada no tempo original. O fundamento originário que se revela no estabelecimento kantiano do fundamento é o tempo” (Id., pp. 256-257).

Formadora de tempo, o meio originário de todos os fenómenos em geral, a imaginação transcendental o recebe como aquilo que forma num ato de receptividade espontânea e de espontaneidade receptiva que constitui a síntese da intuição e do entendimento, isto é, o conhecimento ontológico na sua pura possibilidade. Neste auto-afetar-se do tempo, fundamento último de todo o conhecimento do objeto, surge a essência do sujeito, princípio deste conhecimento. O tempo define a própria ipseidade do ego transcendental, o ser-em-si da subjetividade. “O tempo como puro afetar-se de si mesmo… forma a essência de toda a auto-solicitação. Assim, se pertence a todo sujeito finito ser solicitado como si, o tempo, puro afeto de si mesmo, forma a estrutura essencial da subjetividade. Esta estrutura é explicada por Heidegger do seguinte modo, de acordo com as três dimensões do tempo: o tempo “é precisamente aquilo que forma (a visada) que, partindo de si mesmo, se dirige para…, de tal modo que a meta assim constituída brota e reflete sobre esta mirada” (GA3FR:244). A objetividade, o ato essencial da subjetividade transcendental, é simultaneamente uma relação de visada em direção a e uma retro-visada em direção a si mesma; (39) “uma e outra constituem juntas a possibilidade de oposição” (GA3FR:247).

(DUFOUR-KOWALSKA, G. L’art et la sensibilité: de Kant à Michel Henry. Paris: J. Vrin, 1996)