Derrida (1987:41-42) – Gemüt

Marcondes Cesar

Descartes não abalou, pois, a ontologia medieval. Esta, detendo-se na distinção entre o ens creatum e o ens infinitum ou increatum, não se interrogou sobre o ser desse ens. O que se passa, quanto à Renascença ou a modernidade do pensamento filosófico, é só o “implante de um preconceito funesto” que retardou uma analítica ontológica e temática do Gemüt (parágrafo 6, p. 25). No horizonte, ou senão no programa de toda essa desconstrução (Destruktion) do espírito, parece assinalada uma tarefa, da qual se deveria seguir o destino ou o vir-a-ser ulterior na obra de Heidegger: a “analítica ontológica temática do Gemüt”. E existe um equivalente francês quanto a esta última palavra? Ponto por ponto? Não vejo. Se um dia Sein und Zeit devesse ser traduzido, não sei qual termo seria o menos adequado. Boehm e de Waelhens compreenderam bem que seria preciso evitar todas as palavras francesas que poderiam tentar mas imediatamente perder o tradutor: espírito, alma, coração. Imaginaram então um estranho estratagema, um recurso estranho: retomar a palavra latina e cartesiana mens, o que não somente não traduz mas reintroduz no próprio programa que seria preciso evitar. Pelo menos o desvio artificial por mens assinala uma dificuldade. Escapa a confusão pior. Qual seria a confusão pior? Pois bem, justamente a tradução de Gemüt por “espírito”, no momento (31) mesmo em que Heidegger prescreve, precisamente neste contexto, evitar (vermeiden) a palavra. Ora, é para essa palavra que a tradução Martineau-Vezin se precipita, como para confundir tudo.

A mesma delimitação visa tanto as “ciências do espírito”, a história como ciência do espírito ou a psicologia como ciência do espírito (Geisteswissenschaftliche Psychologie) quanto todo o aparelho conceitual que se organiza em torno da psyche e da vida em Dilthey, Bergson, nos personalismos ou as antropologias filosóficas. Heidegger declara as diferenças, mas inscreve no mesmo conjunto todos os que fazem referências à vida e à estrutura intencional. Quer se trate de Husserl ou de Scheler, ocorre a mesma incapacidade de interrogar o ser da pessoa. Encontramos desenvolvimentos análogos n’Os problemas fundamentais da fenomenologia (GA24:§15). Logo, neste ponto, o conceito de espírito, esse conceito de espírito, deve ser desconstruído. O que lhe falta, além de toda a questão ontológica sobre o que une o homem (alma, consciência, espírito e corpo), é bem então uma analítica do Gemüt.

original

[DERRIDA, Jacques. De l’esprit. Heidegger et la question. Paris: Galilée, 1987] [DERRIDA, Jacques. Do espírito : Heidegger e a questão. Tr. Constança Marcondes Cesar. Campinas: Papirus, 1990]

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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