(Jolivet1975)
Já Kant mostrara que a existência não é predicado, ou determinação de qualquer coisa, e que as relações de todos os predicados ao sujeito não designam por si algo existente, porque o sujeito deve, como existente, ser previamente admitido, embora insusceptível de demonstração, dada a incomensurabilidade entre a razão, que é função neutralizadora da existência e redutora desta à essência, e a existência, que é acto absoluto e irredutível a qualquer conceptualização ou artifício racional. Nunca os predicados por si determinam se pertencem a um sujeito existente ou simplesmente possível. Nesta indeterminação radica a impossibilidade de a [viii] existência ser considerada predicado ou atributo, ou equiparada nocionalmente à essência, problema que surge actualmente na questão da precedência da existência relativamente a essência, especialmente tratado no capitulo referente a Sartre.
De facto, a essência não garante a existência, nem a existência garante a essência, como ocorre na dialectica nocional da escolástica. Tema problematizado em novos termos na filosofia actual, embora os novos termos recordem certas posições na história da filosofia, e mormente da filosofia de S. Tomás, que, relativamente a este problema, tem posição original e distinta. A existência não é acidente a atribuir à essência, mas a essência acidente a atribuir ao existente. As noções de existência e de essência, e a consequente neutralização da existência pela essência, pendor irresistível do pensamento filosófico da idade moderna, pressupõem o mesmo nível a duas noções originariamente diferenciadas e cuja ordenação é oposta à tradicionalmente admitida. O verbo latino « esse» tem nisso grave responsabilidade. « Esse», que significa existir, segundo Gilson, não provém de « essentia», mas é «essentia» que provém ou deriva de « esse ». O mesmo é dizer que a possibilidade não é anterior ao existente, pois possibilidade pressupõe o existente e tem no existente a sua origem.
Os esquemas gerais estruturados em íntima coerência pela filosofia não serviam à hermenêutica do existente, isto é, à interpretação do homem na sua situação concreta do «estar-no-mundo», situação que, por incômoda, era também deixada « entre parêntesis » nos grandes sistemas. Esta situação concreta, inapreensível pelos ramos divergentes da dicotomia abstractiva, e irredutível ao plano nocional em que radica a dicotomia classificatória, era inevitavelmente subsumida e considerada como «contingência», sempre de menos-valor, portanto, em relação às verdades necessárias pela abstracção facilmente fornecidas. A correcção desta pretensa anomalia conseguia-se, pior ou melhor, com a análise progressiva do complexo humano, análise que permitia úteis e convenientes dissociações, que pretensamente garantiam o valor supremo da necessidade lógica. A lógica, porém, é apenas jogo nocional, e tanto mais significativo quanto mais abstracto. A existência humana é tanto mais significativa quanto mais concreta e irredutível a identificações. Sartre afirma : « nenhum ser necessário pode explicar a existência; a contingência não é aparência enganadora que se possa dissipar : é o absoluto e, por consequência, a gratuidade perfeita ».