cuidado

Sorge, cura

No tocante aos seus modos positivos, a preocupação possui duas possibilidades extremas. Ela pode, por assim dizer, retirar o “CUIDADO” do outro e tomar-lhe o lugar nas ocupações, saltando para o seu lugar. Essa preocupação assume a ocupação que outro deve realizar. Este é deslocado de sua posição, retraindo-se, para posteriormente assumir a ocupação como algo disponível e já pronto, ou então dispensar-se totalmente dela. Nessa preocupação, o outro pode tornar-se dependente e dominado mesmo que esse domínio seja silencioso e permaneça encoberto para o dominado. Essa preocupação substitutiva, que retira do outro o “CUIDADO”, determina a convivência recíproca em larga escala e, na maior parte das vezes, diz respeito à ocupação do manual. STMSC: §26

Em contrapartida, subsiste ainda a possibilidade de uma preocupação que não tanto substitui o outro, mas que salta antecipando-se a ele em sua possibilidade existenciária de ser, não para lhe retirar o “CUIDADO” e sim para devolvê-lo como tal. Essa preocupação que, em sua essência, diz respeito à cura propriamente dita, ou seja, a existência do outro e não a uma coisa de que se ocupa, ajuda o outro a tornar-se, em sua cura, transparente a si mesmo e livre para ela. STMSC: §26

Nas ocupações do que se faz com, contra ou a favor dos outros, sempre se cuida de uma diferença com os outros, seja apenas para nivelar as diferenças, seja para a presença [Dasein], estando aquém dos outros, esforçar-se por chegar até eles, seja ainda para a presença [Dasein], na precedência sobre os outros, querer subjugá-los. Embora sem o perceber, a convivência é inquietada pelo CUIDADO em estabelecer esse intervalo. Em termos existenciais, a presença [Dasein] possui o caráter de afastamento (Abständigkeit). Quanta mais este modo de ser não causar surpresa para a própria presença [Dasein] cotidiana, mais persistente e originária será sua ação e influência. STMSC: §27

O impessoal possui ele mesmo modos próprios de ser. A tendência do ser-com que denominamos de afastamento funda-se em que a convivência, o ser e estar um com o outro como tal, promove a medianidade. Este é um caráter existencial do impessoal. Em seu ser, o impessoal coloca essencialmente em jogo a medianidade. Por isso, ele se atém faticamente à medianidade do que é conveniente, do que se admite como valor ou sem valor, do que concede ou nega sucesso. Essa medianidade, designando previamente o que se pode e deve ousar, vigia e controla toda e qualquer exceção que venha a impor-se. Toda primazia é silenciosamente esmagada. Tudo que é originário se vê, da noite para o dia, nivelado como algo de há muito conhecido. O que se conquista com muita luta torna-se banal. Todo segredo perde sua força. O CUIDADO da medianidade desvela também uma tendência essencial da presença [Dasein], que chamaremos de nivelamento de todas as possibilidades de ser. STMSC: §27

Supondo que aquilo que impessoalmente se pressentiu e farejou seja, algum dia, de fato transformado, será justamente a ambiguidade quem terá CUIDADO para que morra imediatamente o interesse pela coisa realizada. Esse interesse só subsiste no modo da curiosidade e da falação, ao dar-se como a possibilidade de mero pressentimento em comum, sem nenhum compromisso. Quando e enquanto se está na pista de alguma coisa, o mero estar junto recusa o compromisso do acompanhamento no momento em que se dá início à realização do que se pressentiu. É que, com a realização, a presença [Dasein] se vê sempre remetida a si mesma. A falação e a curiosidade perdem o seu poder. E, por isso, se vingam. Face à realização do que se pressente em comum, a falação lança logo mão de uma constatação fácil: isso qualquer um poderia ter feito, pois também já o tinha pressentido. Em última instância, a falação não está sequer empenhada em que o que ela pressente e constantemente requer aconteça realmente. Pois, com isso, ser-lhe-ia arrancada a oportunidade de continuar pressentindo. STMSC: §37

A totalidade existencial de toda a estrutura ontológica da presença [Dasein] deve ser, pois, apreendida formalmente na seguinte estrutura: o ser da presença [Dasein] diz anteceder-a-si-mesma-no-já-ser-em-(no mundo) como-ser-junto-a (os entes que vêm ao encontro dentro do mundo). Esse ser preenche o significado do termo cura , aqui utilizado do ponto de vista puramente ontológico-existencial. Fica excluída dessa significação toda tendência ôntica como CUIDADO ou descuido. STMSC: §41

O poder-ser, em virtude de que a presença [Dasein] é, possui em si mesmo o modo de ser-no-mundo. Nele reside, portanto, ontologicamente, a remissão ao ente intramundano. A cura é sempre ocupação e preocupação, mesmo que de modo privativo. No querer só se apreende um ente já compreendido, isto é, um ente já projetado em suas possibilidades como ente a ser tratado na ocupação ou a ser CUIDADO em seu ser na preocupação. É por isso que ao querer sempre pertence algo que se quer, algo que já se determinou a partir daquilo em-virtude-de que se quer. Para a possibilidade ontológica do querer são constitutivos: a abertura prévia do em-virtude-de que (o anteceder-a-si-mesma), a abertura do que se pode ocupar (o mundo como algo em que já se é) e o projeto de compreender da presença [Dasein] num poder-ser para a possibilidade de um ente “que se quis”. No fenômeno do querer, transparece a totalidade subjacente da cura. STMSC: §41

Nas interpretações precedentes que conduziram, em última instância, à exposição da cura como ser da presença [Dasein], tudo buscava conquistar os fundamentos ontológicos adequados para o ente que nós mesmos somos e que chamamos de “homem”. Para isso, a análise teve de seguir, desde o princípio, a direção do ponto de partida, ontologicamente não esclarecido e em seus fundamentos questionável, legado na definição tradicional do homem. Avaliada por essa definição, a interpretação ontológico-existencial pode causar estranheza sobretudo quando se compreende a “cura” apenas onticamente como “CUIDADO” e “apreensão”. Nesse sentido, deve-se agora introduzir um testemunho pré-ontológico, cuja força de comprovação é “apenas histórica”. STMSC: §42

Como se deve conceber essa unidade? Como a presença [Dasein] pode existir, numa unidade, nos modos e possibilidades de seu ser? Manifestamente, só enquanto esse ser for ele mesmo em suas possibilidades essenciais, enquanto eu sempre {CH: a própria presença [Dasein] é esse ente} sou esse ente. Aparentemente, o “eu” “sustenta numa coesão”, a totalidade do todo estrutural. Na “ontologia” desse ente, o “eu” e o “si-mesmo” foram, desde sempre, concebidos como fundamento de sustentação (substância e sujeito). Já na caracterização preparatória da cotidianidade, a presente analítica deparou-se com a questão do quem da presença [Dasein]. Mostrou-se que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença [Dasein] não é ela mesma mas perdeu-se {CH: o “eu” como o si-mesmo, em certo sentido, “o mais próximo”, em primeiro plano e, assim, aparente} no impessoalmente-si-mesmo. Este é uma modificação existenciária do si-mesmo em sentido próprio. A questão da constituição ontológica do si-mesmo ficou sem resposta. Os fios condutores do problema foram, sem dúvida, fixados em princípio. Se o si-mesmo pertence às determinações essenciais da presença [Dasein], cuja “essência” reside na existência, então tanto a estrutura do eu quanto a do si-mesmo devem ser concebidas existencialmente. Mostrou-se também de forma negativa que a caracterização ontológica do impessoal proíbe qualquer aplicação das categorias de ser simplesmente dado (substância). Em princípio, esclareceu-se que: do ponto de vista ontológico, a cura não pode ser derivada da realidade e nem construída segundo as categorias de realidade. A cura já abriga em si o fenômeno do si-mesmo e, caso esta tese se justifique, a expressão “cura de si mesmo” é uma tautologia, cunhada em correspondência à preocupação enquanto CUIDADO com os outros. Nesse caso, o problema da determinação ontológica do si-mesmo da presença [Dasein] torna-se uma questão aguda, isto é, a questão do “nexo” existencial entre cura e si-mesmo. STMSC: §64