Casanova (2014) – pertencemos ao caráter do mundo

(Casanova2014)

Este é o ponto central que gostaria de acentuar uma vez mais ao final desta pequena apresentação: a interpretação heideggeriana de Nietzsche se constrói em sintonia com a sua concepção da metafísica da técnica contemporânea. Sua concepção da metafísica da técnica é a base de sustentação de afirmações tais como: a filosofia de Nietzsche representa a consumação da metafísica, o último enredamento na história do niilismo, a culminação da metafísica da subjetividade moderna. Alguns são, contudo, os elementos de conexão que precisam ser realçados para que possamos ter clareza quanto a tal fato. Em primeiro lugar, o abandono do ser que vem à tona com o pensamento de Nietzsche. À medida que o ser é assumido como um valor de segunda grandeza estipulado a cada vez circunstancialmente pela dinâmica da vontade de poder, o ser mesmo se retrai no ponto mais profundo de sua infinita diferença em relação a todo e qualquer ente, e o projeto de mundo daí emergente experimenta uma espécie de cisão radical em relação à sua própria historicidade. Tudo o que está em questão passa a ser o jogo cada vez mais vertiginoso de configurações que incessantemente se apresentam, apenas para serem imediatamente superadas por novas configurações. No interior desse jogo, não há mais nada realmente decisivo, pois qualquer impasse ou desagregação momentâneos tendem a ser rearticulados em novas figuras e formas que, elas mesmas, caminham para o mesmo destino. Tudo funciona aqui incessantemente, e não há nada capaz de produzir uma quebra nesse processo. Para além disso, como não há mais nenhum elemento que se mostre como independente ante a dinâmica da vontade de poder, como não há nenhum átomo, nenhuma mônada, nenhuma coisa em si originária para além do princípio de estruturação da totalidade, tudo é aqui produzido, feito, levado a termo. Não há mais limites internos à produção, e a realidade perde simultaneamente toda e qualquer autonomia em relação à dinâmica própria a uma vontade que acaba, enfim, por circular em si mesma. A vontade de poder torna-se, em suma, operativa no mundo da técnica contemporânea, à medida que ganha o espaço de maquinação (Machenschaft), um termo que indica, para Heidegger, a transformação da totalidade em fundo de reserva para o processo de produção da vontade, para a requisição incessante de uma subjetividade incondicionada chamada composição (Gestell). Não podemos fornecer aqui mais do que um aceno nessa direção, mas esse aceno é indispensável para que se possa compreender o horizonte hermenêutico no qual se movimentam as interpretações heideggerianas do pensamento de Nietzsche e acompanhar a repercussão dessas interpretações em contextos teóricos posteriores. Isso não significa, naturalmente, que temos agora de aceitar todas as análises de Heidegger por percebermos o seu caráter mais fundamental. É sempre importante questionar as compreensões pontuais e mostrar a inconsistência de uma determinada interpretação. No entanto, um tal procedimento deve ter sempre clareza quanto ao seu próprio horizonte hermenêutico. Nietzsche escreveu certa vez em um póstumo datado entre o outono de 1885 e o início de 1886: “Não há dúvida de que pertencemos ao caráter do mundo. Não temos nenhum acesso a ele senão através de nós mesmos: tudo o que há de elevado e baixo precisa ser compreendido como pertencendo necessariamente à sua essência!”.1 Essa é uma forma de dizer que cada interpretação traz consigo uma face possível daquilo de que ela é interpretação, e que tudo o que há de mais elevado e mais baixo, de mais entusiasmante e mais desagradável pertence essencialmente ao que é interpretado. Heidegger não traz consigo certamente nenhuma imagem idílica do pensamento de Nietzsche, nem tampouco se preocupa em fomentar o burburinho da moda Nietzsche. Ao contrário, ele trata Nietzsche como um pensador fundamental e o insere incessantemente em diálogos com as repercussões de seu pensamento no mundo que é o nosso. Essa inserção produz, sim, uma determinada desfiguração. Como nos adverte Zaratustra, porém, é só “onde se tagarela que o mundo se mostra como um jardim”.2 Quem se dispõe a entrar na vida do pensamento precisa estar disposto a abandonar todo e qualquer jardim.

O próprio Nietzsche designa a experiência determinante de seu pensamento:

“A vida… mais misteriosa – desde o dia em que o grande libertador se abateu sobre mim, o pensamento de que a vida precisaria ser um experimento dos seres cognoscentes.” A gaia ciência Livro IV, n° 324 (1882)

  1. Friedrich Nietzsche, Nachgelassene Fragmente 1885-1887,1(89), KSA 12, p. 29.[↩]
  2. Friedrich Nietzsche, Assim falou Zaratustra, Do convalescente, KSA 4, p. 272.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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