Carneiro Leão – coisa-em-si

Excertos do ensaio “Onipotência e coisa em si”, da Coleção Diagrama

“E o vigor do homem, poderás compreendê-lo condignamente sem o vigor do todo?” PLATÃO, Fedro, 270 c.

Com simplesmente ser, a psicanálise está sempre em crise. A crise é crítica por ser clínica. Em crise, a psicanálise nos fala de outro Freud. De um Freud, que não conhecemos mas somos em tudo que de Freud temos consciência de saber. É que, na própria consciência de nossos conhecimentos, ele mostra o espelho do inconsciente e nos convida a ver o sol da clínica.

Todos nós acorremos ansiosos por, enfim, poder acabar com o mistério das sombras. Olhamos no espelho e não podemos ver nada. Ofuscados pela intensidade universal da clínica, temos que fechar os olhos. Revoltados contra o outro Freud, voltamo-nos para o poder da consciência, descarregando toda a frustração de nosso não poder: o espelho é verdadeiro mas sua demasiada abrangência dissolve a clínica. Nivelando tudo a tudo, não da o poder de se diferenciar quem de quem. Todos se equivalem no não poder ver da cegueira.

Com o poder da consciência fragmentamos o espelho. Os fragmentos, não sendo abrangentes, nos facultam proceder por partes, na certeza crítica de assim podermos ver o sol da clínica. Mas, ao olharmos em cada fragmento, não podemos ver o sol. Só vemos nossa própria imagem. Ofuscados pelo poder de fragmentar o espelho, perdemos de vista a clínica. E todas as vezes que lhe desocupamos o lugar, encontramos em cada fragmento todo o espelho, a ofuscar-nos com o brilho universal da clínica.

Em toda crise mora a clínica de uma onipotência. A onipotência nasce em tolerar a diferença da realidade. Com a pretensão de criar a coisa em si busca-se eliminar a diferença e assim suprir a impotência. Reclinando-se na tolerância da diferença, a crise se inclina sobre a impotência para declinar uma onipotência. É neste múltiplo movimento de Klínein que a crise é a clínica de uma onipotência. Na crise da psicanálise está em jogo a clínica da onipotência de uma consciência do inconsciente. Refletindo, que toda luz da consciência obscurece quanto mais esclarece, o espelho não dá o poder de acabar com o mistério das sombras. Mostra, ao contrário, o mistério da própria claridade. É o espelho da crise. De seu espelhar provém a experiência de pensamento da coisa em si no movimento da clínica da onipotência.

O espelho expõe a experiência do pensamento, dispondo-nos a pensá-lo como função da coisa em si. Nesta disposição, o problema da coisa em si é o problema da própria experiência do pensamento. A coisa em si não é apenas o objeto mas sobretudo o sujeito do pensamento. Por isso a experiência é o fazer-se pensamento da coisa em si. Diretamente o pensamento fala da coisa em si como se falasse apenas sobre a coisa em si, quando na verdade já é sempre a partir da coisa em si que deixa a coisa em si ser na experiência do pensar o vigor de si mesma.

Para alcançar de alguma maneira a dimensão desta circularidade, o pensamento deve, a cada passo de sua passagem, quebrar o poder ce seu esforço e fazer-se ausente em sua presença a fim de, no vazio desta ausência, abrir espaço e dar lugar para a operação da coisa em si na experiência do pensar. Só assim subsiste esperança de o pensamento, vigente no vigor da coisa em si, lançar alguma luz sobre as estruturas de si mesmo. É então que se poderá fazer a experiência excitante de que sempre vivemos a coisa em si em todas as nossas experiências de pensar e não pensar.

Chama-se de experiência a estruturação da coisa em si que proporciona os fundamentos para se pensar a coisa em si. Pensar o pensamento significará então experienciar a necessidade da experiência para se pensar os propósitos, os limites e os pressupostos de todas as nossas maneiras de perguntar concretamente, o que é o homem.

Na medida em que um pensamento se afirma por sua capacidade de pensar a experiência da coisa em si, a presente reflexão visa a fazer uma experiência de pensamento, pensando o pensamento da coisa em si de Kant. Como todo pensamento, o pensamento da coisa em si depende do caráter essencialmente humano, isto é, não onipotente, da experiência. As transformações do crescimento vivem do vigor desta finitude. Mesmo nas mais elevadas de suas possibilidades, na própria transcendência das invariantes, o homem é e permanece um ser sensível. Um ser, que tem de receber de outro as virtualidades para realizar sua própria humanidade. (“Onipotência e coisa em si” – Coleção Diagrama)

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

Designed with WordPress