Byung-Chul Han (AE) – o bater das asas de eros

Numa carta endereçada a sua mulher, escreve Martin Heidegger: “O outro, inseparável do amor a ti e, de outro modo, inseparável do meu pensamento, é difícil de dizer. Chamo-o de Eros, o mais antigo dos deuses, segundo a palavra de Parmênides. O bater as asas daquele deus toca-me cada vez que no pensamento dou um passo essencial e ouso avançar no ainda não trilhado. Ele me toca, talvez, mais fortemente e de forma mais misteriosa que outros, quando o que há muito tempo se adivinhou precisa ser trazido à região do dizível e quando o dito tem de ser abandonado à solidão por muito tempo. Corresponder a isso limpidamente e, no entanto, conservar o que é nosso, seguir o voo e, no entanto, retornar bem, realizar ambas essas coisas de forma igualmente essencial e como convém, é isso em que facilmente eu fracasso, e então escorrego para a mera sensorialidade ou, através do mero trabalho, tento forçar aquilo que não pode ser forçado”. Sem a sedução do outro atópico, que acende uma cupidez erótica no pensamento, esse se atrofia em mero trabalho, que reproduz sempre o igual. Falta ao pensamento calculista a negatividade da atopia. É trabalho no positivo. Não há nenhuma negatividade para lançá-lo para a inquietação. O próprio Heidegger fala de “mero trabalho”, para onde escorrega o pensamento quando não é impingido pelo eros, e ousa lançar-se no “que ainda não foi trilhado”, no incontrolável. O pensamento é tocado “mais fortemente”, “mais misteriosamente” pelo bater das asas de eros, no momento em que o outro atópico, inefável procura transpor-se para a linguagem. A resistência do outro atópico está totalmente ausente do pensamento calculativo, impulsionado por dados. O pensamento sem eros é meramente repetitivo e aditivo. E o amor, sem eros, sem seu impulso espiritual, degenera em “mera sensorialidade”. Sensorialidade e trabalho pertencem à mesma ordem. Eles não têm espírito nem cupidez.


Eros conduz e seduz o pensamento pelo intransitado, pelo outro atópico. A daimonia do discurso socrático remonta à negatividade da atopia. Mas ela não desemboca na aporia. Contrariamente à tradição, Platão afirma que poros seria o pai de eros. Poros significa caminho. É bem verdade que o pensamento ousa trilhar o intransitado, mas não se perde nele. Em virtude de sua proveniência, eros lhe mostra o caminho. Filosofia é a tradução do eros em logos. Quando observa que é tocado pelo bater das asas de eros, Heidegger está seguindo a teoria platônica de eros, tão logo ele dê qualquer passo essencial no pensamento e se lance a trilhar o intransitado.
(ByungAE)

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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