FALAR do ser é uma arte difícil. Todos estamos no enredo dessa árdua fala. A vida é o drama do ser. Quem vive, pelo fato mesmo de se encontrar na fluência do acontecer-vida, está na investigação do ser.
Estamos na vida como que deslocados, i. é, não diretamente nela colocados. O saber que dela temos é indireto, recolhido em sucessivas experiências, conscientes algumas, a maioria inconscientes.
A partir do que vivemos, figuramos e representamos o que é a Vida – vida. O discurso da vida é sempre oblíquo, nunca direto. Ela nos acena em cada experiência. Apenas um aceno de si própria: parece que a temos aí na experiência, logo, porém, nos apercebemos que jamais a temos. No dar-se ela se retrai. No retrair-se nos deixa na provocação do questionamento: o que é a vida? O «é» reenvia ao ser. A cada coisa se predica «é», porque cada coisa é ser.
Dizer o que seja o ser sem aprisioná-lo num determinado modo de fala é o que pretende a filosofia. Isso significa que em geral não somos filósofos, porque sempre que pensamos e falamos, falamos e pensamos de um ser definido e particularizado. Nunca do ser.
Investigar o ser é se propor colher a existência no nível anterior aos seus modos de aparecer. É investigar o é, que está em tudo, antes de se inclinar para este ou aquele modo de existir.
Aí estão a pedra, o edifício, o animal, o homem, as religiões, a arte, a ciência, a técnica. São realidades. Estamos em contacto com elas, sabemos o que são: da-mos-lhes nomes. Nosso conhecimento as atinge, porém, a partir de um determinado enfoque. A pedra é material de construção para o pedreiro, é obstáculo para o alpinista, é arte para o escultor, é verso de um poema para o poeta Drummond de Andrade. Tudo isso é a pedra e muito mais que tudo isso: ela pode ser falada de tantos modos quantos forem os ângulos do falante.
As coisas todas são conhecidas sempre a partir de um ponto de vista. Elas se diferenciam umas das outras no modo em que aparecem e na perspectiva em que são consideradas.
Com isso, porém, não está tudo explicado. Antes o contrário. O principal não está explicado: o possível dessa possibilidade. O explicado vive sempre do não explicado.
Há em todos os seres que aí estão uma profundidade nomeada com a minúscula palavra é. Os seres, todos eles, pedra ou árvore, animal ou homem, estrela ou formiga, simplesmente são. Embora se apresentem diferentes, parece que sua diferença se constitui a partir de uma identidade inominável. A esse inominável damos o nome de ser: o homem é, a planta é, a estrela é. Aparecem porque são. Aparecem deste ou daquele modo, diferentes uns dos outros, porque estão no envio, na causação do ser.
Dizer o ser naquela profundidade é hoje difícil. A modernidade está habituada a só considerar o ser no seu aspecto de uso, enquanto o ser se instrumentaliza para um fim. Dizer o ser antes de seu uso, antes de toda utilidade que dele possamos fazer, é dizê-lo na verdade.
O ser é verdadeiro simplesmente porque é, antes de qualquer fim a que posso encaminhá-lo, antes de qualquer uso que dele faça. Ele aí está. Considerá-lo no seu estar-aí, sem finalizá-lo, é começar a filosofar. Foram os gregos que por primeiro verbalizaram tal experiência.
«Algo se apresenta. Consiste em si mesmo e assim se propõe. É. Para os gregos «Ser» diz no fundo esse estado de apresentação e presença (Anwesenheit)». (M. Heidegger, Introdução à Metafísica, p. 89).