O Jornal Existencial Online publicou uma entrevista exclusiva, feita pela psicóloga Flávia Machado, com um dos mais respeitados representantes do Existencialismo no Brasil, o filósofo, professor e doutor Gerd Bornheim.
Segue a íntegra da entrevista, que foi realizada no dia 14 de abril e complementada no dia 07 de julho de 2000.
FLÁVIA: Como o Sr. entende a concepção do homem para Sartre?
GERD BORNHEIM: Num primeiro momento Sartre pretendia fazer uma análise que desse conta da situação humana como tal. Faz “O Ser e o Nada” como a ontologia do homem de um modo absoluto, que seria válido para o homem de qualquer tempo, qualquer época, em qualquer lugar. Aos poucos, ele foi modificando este ponto de vista, foi quando ele passou para a “Crítica da Razão Dialética”, que começou a assumir a causa política e social mais intensamente. Ele viu que de fato a análise que tinha feito daria para o homem contemporâneo do tempo dele, não de qualquer lugar. Ele faz uma mudança dizendo que é o homem em situação. Ele adverbializa toda sua doutrina. A situação hoje, resta dizer, é uma adverbialização.
FLÁVIA: A concepção de liberdade também mudou conforme Sartre foi realizando sua obra?
GERD BORNHEIM: Muito menos, um pouco menos radical. Mas, o fato é que ele manteve o conceito fundamental. Só que não voltou com mais intensidade ao tema. A primeira fase o grande tema é a liberdade absoluta. Liberdade quer dizer antes de tudo responsabilidade. Só que antes a responsabilidade não era coletiva, e esse era o tema da Critica da Razão Dialética. A liberdade é individual necessariamente, a responsabilidade tem que ser minha e de cada um. E nós somos responsáveis por toda humanidade. Essa ideia não é nova, é de Kant. A dialética de Kant é calcada exatamente neste princípio, que quer dizer que é uma ideia que atravessa os tempos modernos e vai estourar com toda sua força justamente com o pensamento de Sartre.
FLÁVIA: Como o Sr. vê a liberdade sartriana com o mundo globalizado. Essas duas visões combinam?
GERD BORNHEIM: Combinam. Mas combinam até uma certa camada da sociedade, eu diria a sociedade burguesa, mais classe média, digamos assim. Aí cabe perfeitamente bem, me parece. A liberdade de nossa época é justamente a liberdade sartriana, que tem raízes que remetem a Descartes. A liberdade, já dizia Descartes, o livre arbitrio, é a coisa mais importante que há no homem. E Descartes foi o primeiro que afirmou isso e é dentro desta linha e de Kant também, que se situa o pensamento sartriano. Agora, há toda uma evolução em Sartre. Na última fase de Sartre a consciência não é mais tão importante, a liberdade é. Mas ele passa a pensar as coisas a partir do conceito de vivência, uma certa oposição do claro e do escuro, do claro e opaco. O homem não é completamente transparente, tem regiões opacas nele também. E começa a se reconciliar com o inconsciente de Freud, através de Lacan. Isto é muito importante também Sartre não admitia o inconsciente antes.
FLÁVIA: Em quais obras podemos observar estas mudanças em Sartre?
GERD BORNHEIM: Por exemplo, na análise que ele fez sobre Gustavo Flaubert, no “Idiota da família” ou então no meu livro “O idiota e o espírito objetivo”, que tem um longo ensaio sobre o Flaubert de Sartre.
FLÁVIA: O Sr. vê convergências e divergências entre Sartre e Heidegger?
GERD BORNHEIM: Grandes. No princípio Heidegger exerceu certa influência sobre Sartre. Depois ele se afastou, porque Heidegger se preocupava cada vez mais com a questão do Ser, do ontológico, e para Sartre a questão toda se concentra na dicotomia sujeito e objeto, que é justamente o que tem que ser superado, segundo Heidegger. Este era um pensamento oposto entre os dois. E em segundo lugar, há toda a questão política e social em Sartre, na qual Heidegger nunca se meteu de cabeça aberta, digamos assim, e Sartre pensava cada vez mais na questão social. Isso os afastou muito.
FLÁVIA: O que o Sr. pensa sobre os psicólogos que utilizam os princípios filosóficos sartrianos ou heideggerianos como base de sua psicoterapia?
GERD BORNHEIM: Eu não sei bem pois não sou técnico de terapia. Mas ouço que existem muitos grupos formados que fazem esse tipo de trabalho. Agora, como isso se desenvolve eu não tenho a menor ideia. E isto parece inclusive uma espécie de moda agora.
FLÁVIA: Como o Sr vê a Filosofia Clínica?
GERD BORNHEIM: Eu estou ouvindo falar nisso. Alguns colegas estão fazendo isso. Eu não estou a par da metodologia, digamos assim.
FLÁVIA: Gostaria que o Sr. falasse sobre os seus livros nos quais faz uma análise sobre o pensamento sartriano?
GERD BORNHEIM: O meu primeiro livro sobre Sartre chama-se “Sartre, metafísica e existencialismo” e apareceu pela editora Perspectiva de São Paulo. Já tem diversas edições e está esgotado. Mas, no mês de agosto deve sair uma nova edição. Eu tenho outro ensaio sobre Sartre que é “O idiota e o espírito objetivo”, um livro de cerca de 100 páginas sobre o último livro de Sartre que é “O idiota da família”. No primeiro faço uma exposição e a segunda parte do livro é, toda ela, uma crítica à Sartre. É bastante violenta. Ela está calcada em Heidegger. Como eu tenho dois livros, ou um e meio sobre Sartre, muita gente pensa que eu sou sartriano. Eu sempre vejo Sartre com muita simpatia. Por exemplo, ele é o homem que assume as contradições do nosso tempo como ninguém. Muito mais que, por exemplo, a escola de Frankfurt, eu acho. Isso lhe dá uma atualidade muito grande. Mas a crítica que eu faço a Sartre, que fiz quando escrevi o livro há 30 anos atrás, tem inspiração heideggeriana.
FLÁVIA: Então, o Sr. é mais heideggeriano?
GERD BORNHEIM: Olha, depois eu me tornei muito crítico também em relação a Heidegger. Agora, sinceramente, eu acho que Heidegger era mais filósofo do que Sartre. Sartre era antes de tudo um moralista. A grandeza dele está exatamente aí.
FLÁVIA: Tanto Sartre quanto Heidegger utilizaram o método fenomenológico para basearem seu pensamento. Como o Sr. vê a utilização desse método feita por eles?
GERD BORNHEIM: São utilizações derivadas do pensamento de Husserl. Eles não têm mais o rigor formal de Husserl. Trata-se de escrever não mais essências. E aí há uma discordância radical em relação ao pai da fenomenologia, onde fica presa a imanência da existência. Então, são os fenômenos que têm que ser descritos. Os critérios muitas vezes são da fenomenologia de Husserl. Mas, o que interessa são os fenômenos existenciais dentro dos quais o homem está instalado. Sartre tenta fazer isto, por exemplo, em seu livro “A Náusea”, que é uma belíssima análise fenomenológica do fenômeno da náusea, que interessa muito a vocês psicólogos. É um exemplo perfeito da fenomenologia tal como Sartre a entende. E em Heidegger toda concepção do homem como ser-no-mundo é fundamentalmente uma descrição fenomenológica muito bem feita também.
FLÁVIA: Muitos psicólogos estão utilizando o método fenomenológico em suas teses e pesquisas de mestrado e doutorado. O Sr. acha que esse método é o mais adequado para as ciências humanas?
GERD BORNHEIM: Acho. E o perigo sabe qual é? É que ele pode estar como que se dissolvendo. Esquece-se amiúde as exigências formais do método. Quer dizer, a parte especificamente metodológica é substituída por uma descrição e, muitas vezes, não se vê bem quais são os critérios, os referenciais metodológicos dessa descrição. Então, o método fenomenológico tende a correr o risco de se dissolver e desaparecer.
FLÁVIA: O que o Sr. pensa sobre os existencialistas hoje no Brasil
GERD BORNHEIM: Bom Heidegger tem uma boa representação no Brasil, eu diria. Sartre eu não vejo tanto, mas em compensação ao nível de mestrado e doutorado tem muita coisa satriana que não aparece ao grande público. Eu vejo pela imprensa que na França a obra de Sartre está muito valorizada agora. Estão retomando à obra de Sartre. Eu acho normal. Não dá para ficar em Sartre, porque, na filosofia, nunca se fica em filósofo nenhum. É que Sartre, mesmo na França, nunca foi objeto de fato de um estudo rigoroso. A bibliografia sobre Sartre é toda muito de vulgarização. De popularização, digamos assim. Mas, uma análise mais pertinente não existe, inclusive na França. A bibliografia sobre Sartre, de modo geral, é muito superficial. Talvez porque Sartre sempre recusasse a ser professor universitário. Nunca participou da vida acadêmica parisiense. Agora, chegou o momento de se fazer uma análise rigorosa do pensamento de Sartre. É um pensamento muito importante.
FLÁVIA: O Sr. fala, por exemplo, de Descartes como base de todo pensamento sartriano
GERD BORNHEIM: Porque a grande influência sofrida por Sartre foi Descartes. Sartre é um francês e o filósofo oficial da França é Descartes. Então, tudo parte de Descartes. A terminologia é mais Hegel, mas os pilares da filosofia sartriana são sujeito e objeto. E quem introduziu isto, de fato, com autonomia foi justamente o pensamento cartesiano. E o esquema formal, eu procuro mostrar isso em minha análise sobre “A Náusea”, é o “Discurso sobre o método” de Descartes. O esquema formal é igual, só que Sartre existencializa a coisa toda. Não é tão intelectualista quanto Descartes.
FLÁVIA: Eu gostaria que o Sr. falasse sobre seus últimos livros e futuros lançamentos.
GERD BORNHEIM: O últimos que saíram foram “Páginas de filosofia da arte” e “O Conceito de Descobrimento”. O primeiro, “Páginas da filosofia da arte” é uma coletânea de ensaios sobre estética, fala sobre o setor de artes plásticas, o setor de teatro, história da arte e diversas outras coisas. É um trabalho que está tendo muita aceitação e eu estou muito satisfeito com a saída deste livro. E o outro, “O Conceito de Descobrimento”, foi publicado agora pela UERJ. A primeira edição já está esgotada. Vai sair a segunda edição em breve. Eu estou preparando um novo livro que talvez fique pronto ainda este ano. Acho que vai sair com o nome de “Vária Filosófica”. Eu gostaria de dizer também que estou escrevendo um breve prefácio sobre a tradução brasileira do livro “A Critica da Razão Dialética” de Sartre. Estou começando a fazer este trabalho agora.
FLÁVIA: Muito obrigado por essa entrevista ao Jornal Existencial On Line. Ela vai ser importante para muitas pessoas.
GERD BORNHEIM: Obrigado a todos vocês. Foi um prazer fazer a entrevista.