(Bornheim1989)
O grande desbravador de caminhos, nesta questão, foi Hegel. A sua intuição genial, expressa na dialética do mestre e do escravo, foi mostrar que a consciência depende, em seu próprio cerne, para ser, do reconhecimento de outra consciência: eu só sou na medida em que o outro me reconhece como tal. Heidegger não é menos incisivo: o homem é, originariamente, ser-com, a relação eu-tu é compreendida a partir do nós; a dimensão “coletiva” do homem não se acrescenta a um eu inicialmente solitário. Em Sartre as coisas se fazem mais complicadas.
O ponto de partida está no olhar. É “infinitamente provável” que o homem que vejo passar seja mais que um boneco aperfeiçoado. Sartre pretende que há uma “ligação fundamental” entre o eu e o tu. Se olho os olhos do outro, sua cor, por exemplo, apreendo um objeto. Mas se capto o olhar do outro tudo muda de figura, pois aí me sinto visto pelo outro, e sei que atrás do olhar do outro há uma consciência. Acontece que o olhar do outro me reduz à condição de objeto, de um em-si. Disso deriva o sentimento originário da minha relação com o outro, que é a vergonha. Tudo se passa como se o outro me flagrasse em meu menos ser, nessa incompletude radical a que me condena o anda que eu sou. A consequência não se faz esperar: a relação intersubjetiva se dá necessariamente no horizonte do conflito; ou bem o outro me olha e sou objeto para ele, ou então reajo e transformo o outro em objeto através do meu olhar. A relação objeto-objeto não existe, o em-si é exterior a si próprio. E a relação sujeito-sujeito também termina não se verificando: como poderia o nada relacionar-se com o nada? Assim, a intersubjetividade só se concretiza com o recurso à dicotomia sujeito-objeto.
O outro é, por princípio, aquele que me olha.
(O ser e o nada, pág, 315)
O olhar é, antes de mais nada, um intermediário que remete de mim a mim mesmo.
(O ser e o nada, pág. 316)
Quando sou visto, tenho, de repente, consciência de mim enquanto escapo a mim mesmo, não enquanto sou o fundamento de meu próprio nada, mas enquanto tenho o meu fundamento fora de mim. Só sou para mim como pura devolução ao outro.
(O ser e o nada, pág. 318)
A vergonha é vergonha de si, ela é reconhecimento de que eu realmente sou esse objeto que o outro olha e julga. Só posso Ter vergonha de minha liberdade enquanto ela me escapa para tornar-se objeto dado.
(O ser e o nada, pág. 319)