Borges-Duarte (2018) – estar em casa do amor

[…] Binswanger, como Otto Bollnow, expressa essa ânsia de transcender o «eu» e o «meu», procurando na literatura e, muito especialmente, nos grandes poetas de todos os tempos a expressão do sentimento que, franqueando a subjectividade do sujeito, torna patente uma afinação primordial, uma atmosfera em que já não se é nem eu mesmo nem um outro, mas um «nós» singular, um ser-comum, sem ser um colectivo. Este «nós» dos amantes não é o «nós» hegeliano, que ressoa no «man» ou impessoal heideggeriano, mas uma pessoa-a-dois, alguém novo que é quem é no ser-com-um-com-o-outro, sem nenhum dos dois ser propriamente outro. Esta diferença implica, pois, para Binswanger, a expressão da transcendência de toda a subjectividade, a inauguração do novum radical que faz do ser amante o mais autêntico «aí» do ser à maneira humana, o existir em plenitude, dando a conhecer um Dasein, cujo ser se inicia desse modo (dual) e cujos espaço e tempo se abrem ao infinito.

Nesta concepção, que Binswanger considera fundada em Ser e Tempo, enquanto obra fundamental da filosofia, os contornos da existência finita e do mundo do trato quotidiano, que constituem o «ser no mundo do cuidado», pretendem ser superados e, de certo modo, sublimados no que chama o «estar em casa do amor». Neste contexto, não são as dissonâncias, mas as consonâncias e os uníssonos que marcam o viver no mundo metamorfoseado em comum, e em lugar de se privilegiarem os afectos negativos e cortantes (como a angústia ou o tédio, ingratos de viver), são os sentimentos gratos que assumem a dinâmica vital e configuram o mundo (novo) dos amantes. Bollnow, que desde muito cedo procurara em Jacobi o carácter vital da alegria, recebe com especial acuidade esta abertura fundamentada na tonalidade da harmonia, que mais tarde incorporará numa ética das virtudes. Também Heidegger, numa via bem diferente, chegará a falar de amor, de zelo protector, de alegria, de serenidade, de gratidão. Mas, tal como em Ser e Tempo, onde privilegiara o cuidado, como configuração temporal da existência, e a angústia, como abertura ao retirar-se do ser, em nenhum caso se limita a falar do emotivo na sua concretude ôntica e sim, em cada caso, na co-pertença do ser que vem ao encontro do seu aí (humano, mortal) e do aí que o acolhe em si oferecendo-se como espaço de jogo-do-tempo em que o que há é — acontece. Em Heidegger, nunca é questão do «humano» em si, mas do «ser» que é aí, como numa canção entoada no viver humano. É o entoado no seu ser entoado que importa. Mas em Binswanger é o entoar que interessa, a solo, em dueto ou — acolhido por Bollnow, pedagogicamente — num coro com regente. Essa diferença entre o ontológico e o antropológico, por todos reconhecida, é também uma opção, que determina o horizonte em que a análise se move. Heidegger nunca abandonará a decisão pela Ontologia, mesmo se condescende em desenvolver uma «metafísica do Dasein», na transição da década de vinte para a de trinta, ou mesmo uma Meta-ontologia, em diálogo com a psiquiatria, em Zollikon. Binswanger e Bollnow mostram, pelo contrário, explicitamente que o seu interesse é basicamente antropológico.