O verbo alemão vernehmen, que traduzimos aqui como “apreender”, dá origem ao substantivo die Vernunft, que mais tarde se tornaria compreensão ou razão. Conhecer e apreender transcrevem aqui, à sua maneira, a palavra grega νοεῖν. O a priori, portanto, não é o que é dado primeiro aos sentidos, mas o que é dado primeiro ao pensamento. Da mesma forma, ele está sob a jurisdição do próprio pensamento. Daí o que poderíamos chamar, se não a origem, pelo menos o caráter fundamentalmente noético dessa determinação do ser como a priori. Daí também a determinação necessária do ser como ente supremo, dando ao ente que é “menos” que ele, a autorização de ser, no entanto, à sua própria maneira. Por outro lado, o pensamento que se esforça para não mais determinar o ser como a priori e para escapar da dilaceração constitutiva de tudo o que é em dois tipos de ser: o ser que é mais ser e o ser que é menos ser, terá correlativamente que subtrair o ἀλήθεια do elemento no qual ele não cessou de se desenvolver desde Heráclito e Parmênides. É por isso que Heidegger se esforçará, na própria leitura desses dois autores, para escapar da preeminência do νοεῖν, a fim de encontrar no próprio coração deste, e, portanto, no fundamento de todo pensamento, a presença de um λόγος irredutível por sua parte a toda racionalidade. O que Heidegger chama de pensamento e a experiência do pensamento não são de natureza “noética”, nem o que ele chama de λόγος é de natureza “lógica”, nem consequentemente “ilógica”.
Pelo contrário, é na primeira determinação do pensamento em termos noéticos, e no correlato eclipse do que poderia ter abrigado dentro desse mesmo pensamento um λόγος cujo traço há muito se perdeu, que devemos procurar a primeira origem da ideia platônica em geral e daquela ideia de todas as ideias que é a ideia do Bem, em outras palavras, o primeiro declínio do pensamento grego no correlato advento da filosofia.
Em um pós-escrito particularmente significativo, Heidegger, com as precauções habituais, chegará a dizer que Aristóteles, no exato momento em que pensa o ser como ἐντελέχεια, pensa-o de um modo mais grego do que Platão. “Apesar da distância que o separa do início da filosofia grega”, escreve Heidegger, ”a metafísica de Aristóteles, em seus aspectos essenciais, apresenta-se mais uma vez dentro do pensamento grego como uma espécie de salto para trás, para o início.” (GA6T2:228) Essa metafísica aristotélica é, na verdade, a própria física, desde que, no entanto, concebamos essa física não como uma região do ser ou do estar, ou seja, como o conjunto de coisas que são por natureza: τὰ φυσικά, mas como o ser, o “há”, a vinda ao mundo, a eclosão subtrativa de tudo o que pode vir ou alcançar o ser.
Com Platão, a prefiguração decisiva do pensamento de acordo com os valores é realizada na subordinação do άλήθεια ao ἰδέα e, mais particularmente, a essa ideia última — ἰδέα τελευταὶα — cujo fim tem o valor de um começo, porque com ela a ideia encontra sua realização para acessar seu verdadeiro ser. O opúsculo de Heidegger intitulado A Doutrina Platônica da Verdade nos conta a história dessa mutação e subjugação da verdade, que, abandonando sem nunca perder completamente sua característica fundamental anterior, a saber, a não vocalização, passa para o jugo da ideia. Doravante, a essência da verdade deixa de se desdobrar a partir de sua própria plenitude, mas, em vez disso, passa a se conformar com a essência do ἰδέα. Correlativamente, essa mudança na essência da verdade é acompanhada por outra mudança, desta vez com relação ao locus ou local da verdade. A rigor, a verdade não pertencerá mais às coisas, ao ser das coisas, ao ser em si, mas, ao contrário e antes de tudo, à exatidão desse olhar capaz de levar em consideração o conhecível como tal, ou seja, para Platão, a ideia de tudo o que pode ser conhecido. “Dessa preeminência conferida ao ίδέα e ao l’ίδεῖν sobre o ἀλήθεια”, escreve Heidegger, ”resulta uma mudança na essência da verdade. A verdade se torna o ορθότῆς a retidão da apreensão e da enunciação.” (GA9) Tudo em verdade dependerá agora de uma certa educação, de uma certa elevação do olhar capaz de ir μετ’ έκεῖνα, ou seja, além daquelas coisas percebidas “lá fora” e que são apenas sombras ou imagens, εις ταῦτα, ou seja, “em direção a estas”, a saber, as ideias. Daí a prefiguração da palavra metafísica no próprio Platão.
O que Heidegger chama jocosamente de “o último e ao mesmo tempo mais fraco descendente do ἀγαθόν” terá de ser buscado na concepção de valor de Nietzsche. Determinante, então, para todo o resto de nossa história é a noção platônica de ίδέα. “Idealista” também é a concepção nietzschiana de valor como uma condição imposta pela própria vida para sua própria possibilidade. É por isso que Heidegger pode dizer que “Nietzsche manteve a essência do ἀγαθόν de uma forma mais livre de preconceitos do que aqueles que perseguem essas disfunções infundadas de ‘valores válidos em si mesmos’.” (GA9)