Arendt (RJ:22-23) – a conduta moral é algo natural?

Rosaura Einchenberg

A minha primeira formação intelectual ocorreu numa atmosfera em que ninguém prestava muita atenção a questões morais; fomos criados com a pressuposição; Das Moralische versteht sich von selbst, a conduta moral é algo natural. Ainda me lembro muito bem da minha opinião juvenil sobre retidão moral, que em geral chamamos de caráter; toda insistência nessa virtude teria me parecido hipócrita, porque isso também achávamos ser algo natural e assim de pouca importância, uma qualidade não decisiva, por exemplo, na avaliação de uma pessoa. Sem dúvida, de vez em quando éramos confrontados com a fraqueza moral, com a falta de firmeza ou lealdade, com essa rendição curiosa, quase automática, à pressão, especialmente da opinião pública, que é tão sintomática das camadas educadas de certas sociedades, mas não fazíamos ideia de como essas questões eram sérias e menos ainda de aonde poderiam nos levar. Não conhecíamos muito sobre a natureza desses fenômenos, e receio que nos importávamos ainda menos. Bem, aconteceu que nos seria dada uma ampla oportunidade de aprender. Para a minha geração e as pessoas da minha origem, a lição começou em 1933 e terminou quando não só os judeus alemães, mas o mundo inteiro, tiveram notícia das monstruosidades que ninguém julgava possíveis no início. O que aprendemos desde então, e não é de modo algum pouco importante, pode ser contado como adições e ramificações do conhecimento adquirido durante aqueles primeiros doze anos, de 1933 a 1945. Muitos de nós precisamos dos últimos vinte anos para nos reconciliarmos com o que aconteceu, não em 1933, mas em 1941, 1942 e 1943, até o amargo fim. E com isso não me refiro à dor e tristeza pessoais, mas ao próprio horror com o qual, como podemos ver agora, nenhum dos grupos interessados foi capaz de se reconciliar. Os alemães cunharam para todo esse complexo o termo altamente questionável de seu “passado incontrolado” (unmasteredpast). Bem, a impressão que temos hoje, depois de tantos anos, é que esse passado alemão ainda continua a ser de certo modo incontrolável para uma boa parte do mundo civilizado. Na época o próprio horror, na sua nua monstruosidade, parecia, não apenas para mim, mas para muitos outros, transcender todas as categorias morais e explodir todos os padrões de jurisdição; era algo que os homens não podiam punir adequadamente, nem perdoar. E nesse horror sem palavras, receio, todos tendemos a esquecer as lições estritamente morais e controláveis que tínhamos aprendido antes, e que nos seriam ensinadas de novo, em inúmeras discussões, tanto dentro como fora dos tribunais.

[ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. Tr. Rosaura Einchenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 84-85]

Original

“Personal Responsihility Under Dictatorship”, in ARENDT, Hannah. Responsability and Judgement. New York: Schocken, 2003 (ebook) (RJ)

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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