Arendt (RJ:112-115) – razão – desejo – vontade – liberdade

Rosaura Eichenberg

Mencionei anteriormente que o fenômeno da vontade era desconhecido da Antiguidade. Mas, antes de tentar determinar a sua origem histórica, que tem um interesse considerável, vou tentar lhes dar, muito sucintamente, uma breve análise da sua função com respeito às outras faculdades humanas. Para fins de concisão, vou começar com uma simples ilustração. Vamos supor que temos diante de nós um prato de morangos e que desejo comê-los. Esse desejo era certamente conhecido da filosofia antiga; o desejo sempre significou ser atraído por algo fora de mim. Isso era natural e de uma ordem não muito elevada, pertencendo, grosso modo, ao animal no homem. A questão de saber se devo ou não ceder a esse desejo era decidida, segundo os antigos, pela razão. Se, por exemplo, sou sujeito a um certo tipo de alergia, a razão me diz para não estender a mão e pegar os morangos. Se vou comê-los mesmo assim, ou não, isso depende da força de meus desejos, por um lado, e da força que a razão tem sobre eles, por outro. Vou comer os meus morangos, quer porque me falta completamente a razão, quer porque a minha razão é mais fraca que meu desejo. A famosa oposição da razão e das paixões, mais a antiga questão de saber se a razão é escrava das paixões ou se, pelo contrário, as paixões devem e podem ser controladas pela razão, retrocede às antigas noções esquemáticas sobre a hierarquia das faculdades humanas.

É nessa dicotomia que a faculdade da vontade é inserida. A inserção significa que nem o desejo nem a razão são abolidos ou sequer empurrados para um posto inferior; os dois ainda mantêm a sua posição. Mas a nova descoberta é que há algo no homem que pode dizer sim ou não aos preceitos da razão, de modo que ceder ao desejo não é um ato incitado pela ignorância, nem pela fraqueza, mas pela minha vontade, uma terceira faculdade. A razão não é suficiente e o desejo não é suficiente. Pois — e essa é a nova descoberta, em poucas palavras: — “O espírito não é posto em movimento até querer ser posto em movimento” (De libero arbitrio voluntatus, III 1.2). Posso decidir contra o conselho deliberado da razão, assim como posso decidir contra a mera atração dos objetos de meu apetite, e o que decide a questão sobre o que vou fazer é mais a vontade do que a razão ou o apetite. Assim posso querer o que não desejo e posso não-querer (nill) tomar conscientemente uma posição contra o que a razão me diz que é certo, e em todo ato esse eu-quero ou eu-não-quero são os fatores decisivos. A vontade é o árbitro entre a razão e o desejo, e enquanto tal apenas a vontade é livre. Além disso, embora a razão revele o que é comum a todo os homens, e o desejo revele o que é comum a todos os organismos vivos, apenas a vontade é inteiramente minha.

Mesmo com essa breve análise esquemática, ficará óbvio que a descoberta da vontade deve ter coincidido com a descoberta da liberdade como uma questão filosófica, distinta de um fato político. Por certo, é bastante estranho para nós observar que a questão da liberdade, particularmente a liberdade da vontade, que desempenha um enorme papel em todo o pensamento filosófico e religioso pós-cristão, nunca tenha aparecido na filosofia antiga. No entanto, essa estranheza se dissolve no momento em que compreendemos que nenhum elemento de liberdade pode residir na razão ou no desejo. O que quer que a razão me diga por um lado pode ser persuasivo ou convincente, ao passo que os meus apetites, por outro lado, são compreendidos como a reação desejosa a qualquer coisa que me afete do exterior.

A liberdade, segundo a filosofia antiga, estava inteiramente ligada com o eu-posso; “livre” significava ser capaz de fazer o que se queria fazer. Dizer, por exemplo, que um paralítico privado da sua liberdade de movimentos ou um escravo sob as ordens de seu senhor eram ainda assim livres, na medida em que também tinham força de vontade, poderia ter soado como uma contradição. E se examinamos a filosofia dos estoicos tardios, especialmente a do filósofo escravo Epicteto (cujos escritos são contemporâneos aos de Paulo, o primeiro escritor cristão), na qual é proposta repetidas vezes a questão da liberdade interior, independentemente das circunstâncias externas e políticas, vemos imediatamente que isso de modo algum significa um deslocamento do desejo para a vontade, ou do eu-posso para o eu-quero, mas apenas um deslocamento nos objetos de meus desejos. Para continuar livre apesar de ser escrava, devo treinar os meus apetites de tal modo que eles só desejarão o que posso obter, o que depende apenas de mim mesma e está assim realmente em meu poder. O paralítico, nessa interpretação, seria livre, tão livre quanto qualquer outro, se apenas parasse de querer usar os seus membros.

Apresentei esse exemplo de Epicteto para evitar mal-entendidos. Esse tipo de interiorização, de restrição do eu-posso da realidade para a esfera de uma vida interior de possibilidades ilimitadas, precisamente por ser irreal, tem pouco em comum com a nossa questão. Muito do que Nietzsche tinha a dizer na sua crítica ao cristianismo só é realmente aplicável a essas últimas etapas da filosofia antiga. Na verdade, Epicteto pode ser compreendido como um exemplo daquela mentalidade escrava ressentida que, ao ouvir de seu senhor: “Você não é livre porque não pode fazer isto ou aquilo”, responderá: “Eu nem quero fazer tal coisa, por isso sou livre”.

[ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. Tr. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 178-181]

Original

I mentioned previously that the phenomenon of the will was unknown to antiquity. But before trying to determine its historical origin, which is of considerable interest, I’ll try very briefly to give you a short analysis of its function with regard to the other human faculties. Let us suppose that we have before us a dish of strawberries and that I desire to eat them. This desire was of course very well known to ancient philosophy; desire has always meant to be attracted by something outside myself. This was natural and not of a very high order, belonging roughly speaking to the animal in man. The question of whether or not I shall yield to this desire was, according to the ancients, decided by reason. If, for instance, I am subject to a certain type of allergy, reason tells me not to reach out to my strawberries. Whether I shall eat them nevertheless, depends on the force of my desires on the one hand, and on the force which reason has over them, on the other. I’ll eat my strawberries either because I lack reason altogether or because my reason is weaker than my desire. The well-known opposition of reason and the passions, plus the old question of whether reason is the slave of the passions or, on the contrary, the passions should and could be brought under the control of reason, hearkens back to the old schematic notions about the hierarchy of the human faculties.1

It is into this dichotomy that the faculty of will is inserted. The insertion means that neither desire nor reason are abolished or even pushed into an inferior rank; they both still hold their own. But the new discovery is that there is something in man that can say yes or no to the precepts of reason, hence that my yielding to desire is prompted neither by ignorance nor by weakness, but by my will, a third faculty. Reason is not enough and desire is not enough. For—and this is the new discovery in a nutshell—”the mind is not moved until it wills to be moved” (Augustine, De libero arbitrio voluntatus 3.1.2). I can decide against the deliberate advice of reason as I can decide against the mere attraction of objects of my appetite, and it is will rather than reason or appetite that decides the issue of what I am going to do. Hence I can will what I do not desire and I can nill, consciously stand against, what reason tells me is right, and in every act this I-will or I-will-not are the decisive factors. The will is the arbiter between reason and desire, and as such the will alone is free. Moreover, while reason reveals what is common to all men, and desire what is common to all living organisms, only the will is entirely my own.2

Even from this brief analysis it will be obvious that the discovery of the will must have coincided with the discovery of freedom as a philosophical issue, as distinguished from a political fact. It certainly is quite strange for us to notice that the question of freedom, particularly freedom of the will, that plays such an enormous role in all post-Christian philosophical and religious thought, should never have appeared in ancient philosophy. This strangeness, however, dissolves the moment that we understand that no element of freedom can possibly reside in either reason or desire. Whatever reason on the one hand tells me may be persuasive or compelling, my appetites on the other hand are understood as the desiring reaction to whatever affects me from the outside.

Freedom, according to ancient philosophy, was altogether bound up with the I-can; “free” meant being capable of doing what one wanted to do. To say, for example, that a paralyzed man who lost his freedom of movement or a slave who stood under the command of his master, were nevertheless free insofar as they too had willpower, would have sounded like a contradiction in terms. And if you look into the philosophy of the late Stoics, especially of the slave philosopher Epictetus (whose writings are contemporaneous with those of Paul, the first Christian writer), where the question of inner freedom regardless of external, political circumstances, is raised time and again, you will immediately see that this by no means signifies a shift from desire to will, or from the I-can to the I-will, but only a shift in the objects of my desires. In order to remain free even though I am a slave, I must so train my appetites that they will desire only what I can obtain, what depends only upon myself, and thus is actually in my power. The paralyzed man, in this interpretation, would be free, just as free as anybody else, if he only would stop wanting to use his limbs.3

I brought up the example of Epictetus to avoid misunderstandings. This kind of internalization, of restriction of the I-can from reality to the realms of an interior life that is limitless in its possibilities precisely because it is unreal, has little in common with our question. Much of what Nietzsche had to say in criticism of Christianity is actually applicable only to these last stages of ancient philosophy. Epictetus can indeed be understood as an example of that resentful slave mentality that, when told by his master, “you are not free because you can’t do this and that,” will reply, “I don’t even want to do it, hence I am free.”

  1. “The goal given by reason may conflict with the goal given by desire. In this case, it is again reason which decides. Reason is a higher faculty, and goals given by reason belong to a higher order. The assumption is that I will listen to reason, that reason masters or rules the desires. Reason does not say, Thou shalt not, but Better not.” (ARENDT, “Basic Moral Propositions”)[]
  2. At this point it becomes clear that neither reason nor desire are free, properly speaking. But the will is—as the faculty of choosing. Moreover, reason reveals what is common to all men qua men, desire is common to all living organisms. Only the will is entirely my own. By willing I decide. And this is the faculty of freedom. (“ARENDT, Basic Moral Propositions”)[]
  3. It is worth noting that in the “Willing” volume of The Life of the Mind Arendt’s position is quite different. There she also says that Epictetus is concerned only with inner freedom, but sees that he indeed has a conception of the will, one that is fully active, “omnipotent,” and “almighty” (“Willing” 73-83).—Ed.[]