Arendt (LM2:96-97) – educação moral = educação da vontade

Abranches et alii

John Stuart Mill, ao examinar a questão da vontade livre, sugere que “a confusão de ideias”, comum nessa área da filosofia, “tem de… ser muito natural para o espírito humano”, e descreve — de maneira menos vivida e também menos precisa, mas com palavras estranhamente semelhantes àquelas que acabamos de ouvir — os conflitos a que está sujeito o ego volitivo. É errado, insiste, descrevê-los como se “ocorressem entre mim e alguma força estranha, a qual conquisto ou pela qual sou sobrepujado. (Pois) é óbvio que ‘eu’ sou ambas as partes nesta disputa; o conflito se dá de mim para comigo mesmo… O que faz com que eu, ou se preferir, minha Vontade, me identifique com um dos lados ao invés do outro é que um dos ‘eus’ representa um estado mais permanente dos meus sentimentos do que o outro.”

Mill precisou desta “permanência” porque “era inteiramente contrário à ideia de que temos consciência de sermos capazes de nos contrapor ao mais forte desejo ou aversão; tinha, portanto, que explicar o fenômeno do arrependimento. O que descobriu, então, foi que “depois de se cair em tentação (isto é, no maior desejo do momento), o ‘eu’ desejante termina, mas o ‘eu’ que tem a consciência pesada pode perdurar até o fim da vida.” Embora este persistente “eu” da consciência pesada não tenha qualquer importância nas considerações posteriores de Mill, ele sugere aqui a intervenção de algo chamado “consciência moral”, ou “caráter”, que sobrevive a todas as volições ou desejos, temporalmente limitados. De acordo com Mill, o “eu que perdura”, e que se manifesta somente quando uma volição chega a seu fim, deveria assemelhar-se a qualquer coisa que tenha impedido o asno de Buridan de morrer de fome na dúvida entre dois montes de feno com o mesmo cheiro bom: “Por simples cansaço… misturado à sensação de fome” o animal acabaria por deixar “completamente de pensar nos objetos rivais.” Mas isto Mill dificilmente poderia admitir, já que o “eu que perdura” é claramente uma das “partes na disputa”; e quando ele diz que “o objeto da educação moral é a educação da vontade”, está pressupondo que é possível ensinar uma das partes a vencer. A educação entra aqui como um deus ex machina: a proposição de Mill baseia-se em um pressuposto não examinado — semelhante aos que os filósofos da moral adotam com uma confiança enorme, e que não podem ser provados ou refutados.

ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. Tr. Antônio Abranches e Cesar Augusto R. de Almeida e Helena Martins. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 257-258

original

John Stuart Mill, examining the question of free will, suggests that “the confusion of ideas” current in this philosophical area “must…be very natural to the human mind,” and he describes—less vividly and also less precisely but in words strangely similar to those we have just been hearing—the conflicts the willing ego is subject to. It is wrong, he insists, to describe them as “taking place between me and some foreign power, which I conquer or by which I am overcome. (For) it is obvious that ‘I’ am both parties in the contest; the conflict is between me and myself…. What causes Me, or, if you please, my Will, to be identified with one side rather than with the other, is that one of the Me’s represents a more permanent state of my feelings than the other does.”

Mill needed this “permanence” because he “disputed altogether that we are conscious of being able to act in opposition to the strongest desire or aversion”; he therefore had to explain the phenomenon of regret. What he then discovered was that “after the temptation has been yielded to (that is, the strongest desire at the moment), the desiring ‘I’ will come to an end, but the conscience-stricken ‘I’ may endure to the end of life.” Though this enduring, conscience-stricken “I” plays no role in Mill’s later considerations, here it suggests the intervention of something, called “conscience” or “character,” that survives all single, temporally limited, volitions or desires. According to Mill, the “enduring I,” which manifests itself only after volition has come to its end, should be similar to whatever prevented Buridan’s ass from starving between two equally nice-smelling hay bundles: “From mere lassitude…combined with the sensation of hunger” the animal “would cease thinking of the rival objects at all.” But this Mill could hardly admit, as the “enduring I” is of course one of the “parties in the contest,” and when he says “the object of moral education is to educate the will,” he is assuming that it is possible to teach one of the parties to win. Education enters here as a deus ex machina: Mill’s proposition rests on an unexamined assumption—such as moral philosophers often adopt with great confidence and which actually can be neither proved nor disproved.