Arendt (LM2:83-84) – poder de obedecer e de desobedecer

Abranches, Almeida & Martins

(…) toda obediência presume o poder de desobedecer, está bem no centro das considerações de Epiteto. O cerne da questão aí é o poder da Vontade para assentir ou dissentir, dizer Sim ou Não, pelo menos no que me diz respeito. Eis porque as coisas que, em sua existência pura — isto é, “impressões” de coisas exteriores —, dependem somente de mim estão também em meu poder; não só posso ter vontade de mudar o mundo (embora essa proposta seja de interesse duvidável para alguém totalmente alienado do mundo em que se encontra), como posso também negar realidade a tudo e qualquer coisa através de um “deixo-de-querer.” Esse poder deve ter tido algo de muito terrível, de realmente esmagador para o espírito humano, pois nunca houve um filósofo ou teólogo que, depois de ter prestado a devida atenção ao “Não” implícito em cada “Sim”, não tenha imediatamente exigido um consentimento enfático, aconselhando o homem, como fez Sêneca em frase citada com grande aprovação pelo Mestre Eckhart, a “aceitar todas as ocorrências como se ele mesmo as tivesse desejado e tivesse rogado por elas.” Certamente se enxergamos nesse acordo universal somente o último e mais profundo ressentimento do ego volitivo em relação à sua impotência existencial no mundo como ele é factualmente, veremos aqui também apenas mais um argumento para o caráter ilusório da faculdade, uma confirmação final de que ela é “um conceito artificial”. Ao homem, nesse caso, teria sido dada uma faculdade realmente “monstruosa” (Santo Agostinho), compelida por sua natureza, a exigir um poder que é capaz de exercer somente na região dominada pela ilusão da mera fantasia — na interioridade de um espírito que conseguiu separar-se de toda aparência exterior em sua busca incansável pela tranquilidade absoluta. E como recompensa final e irônica para tanto esforço, terá obtido um relacionamento desconfortavelmente íntimo com o “depósito das dores e o tesouro dos males”, nas palavras de Demócrito, ou com o “abismo”, que, segundo Santo Agostinho, esconde-se “no coração bom e no coração mau.”

[ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. Tr. Antônio Abranches e Cesar Augusto R. de Almeida e Helena Martins. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 247-248]

Original

ARENDT, H. The Life of the Mind: the Groundbreaking Investigation on How We Think. Boston: Houghton Mifflin Harcourt, 1981 (LM)

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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