Arendt (LFPK:16-17) – as “críticas” de Kant

André Duarte de Macedo

(…) não estou querendo dizer que Kant, pelo breve tempo de vida que lhe restava, falhou em escrever a “quarta Crítica”, mas, antes, que a terceira Crítica, a Crítica do juízo — que, diferentemente da Crítica da razão prática, foi escrita espontaneamente e não, como a Crítica da razão prática, em resposta a observações críticas, questões e provocações — é na realidade o livro que, de um outro modo, viria a fazer falta no grande trabalho de Kant.

Concluído o ofício crítico, havia, de seu próprio ponto de vista, duas questões pendentes — questões que o tinham incomodado durante toda a vida, e cujo trabalho interrompera a fim de primeiro esclarecer o que havia chamado de “escândalo da razão”: o fato de que a “razão se contradiz a si mesma” 1 ou de que o pensamento transcende os limites do que podemos conhecer e, então, vê-se enredado em suas próprias antinomias. Sabemos, pelo próprio testemunho de Kant, que o ponto decisivo em sua vida foi a descoberta (em 1770) das faculdades cognitivas do espírito humano e de suas limitações, descoberta que levou mais de dez anos para ser elaborada e publicada como a Crítica da razão pura. Também sabemos, por suas cartas, o quanto significou esse imenso trabalho de tantos anos para seus outros planos e ideias. Acerca desse “tópico principal”, Kant escreve que ele impediu e obstruiu, como “um dique”, a apreciação de todas as outras investigações que esperava terminar e publicar; que fora como uma “pedra em seu caminho”, e que só poderia prosseguir após sua remoção. 2 E quando retornou às preocupações do período pré-crítico, algo nelas havia mudado à luz do que ele agora sabia; mas não se haviam tornado irreconhecíveis, nem poderíamos afirmar que tivessem perdido sua urgência para ele.

(17) A mais importante mudança pode ser assim indicada. Antes do evento de 1770, Kant pretendera escrever, para rápida publicação, a Metafísica dos costumes — um trabalho que, na realidade, escreveu e publicou apenas trinta anos depois. Mas naquela data anterior o livro havia sido anunciado sob o título de Crítica do gosto moral.3 Quando Kant finalmente voltou-se para a terceira Crítica, ainda a chamou, a princípio, de Crítica do gosto. Assim, duas coisas aconteceram: por trás do gosto, um tópico favorito de todo o século XVIII, Kant descobriu uma faculdade humana inteiramente nova, isto é, o juízo; mas, ao mesmo tempo, subtraiu as proposições morais da competência dessa nova faculdade. Em outras palavras: agora, algo além do gosto irá decidir acerca do belo e do feio; mas a questão do certo e do errado não será decidida nem pelo gosto nem pelo juízo, mas somente pela razão.

original

  1. Carta a Christian Garve, 21 de setembro de 1798. Ver Kant, Philosophical Correspondence 1759-1799, ed. e trad. Arnulf Zweig, University of Chicago Press, Chicago, 1967, p. 252.[↩]
  2. Cartas a Marcus Herz, 24 de novembro de 1776 e 20 de agosto de 1777. Ver Philosophical Correspondence 1759-1799, ed. Zweig, pp. 86,89.[↩]
  3. Ver Lewis White Beck, A Commentary on Kant’s Critique of Practical Reason, University of Chicago Press, Chicago, 1960, p. 6.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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