Arendt (DV:6-7) – previsão científica

Maria Claudia Drummond

Nessas circunstâncias, existem, de fato, poucas coisas mais atemorizantes do que o prestígio sempre crescente dos “donos do saber” de mentalidade científica que vêm assessorando os governos durante as últimas décadas. O problema não é que eles tenham suficiente sangue-frio para “pensar o impensável”, mas sim que não pensam. Ao invés de se entregarem a essa atividade tão antiquada e impossível de ser computada, levam eles em conta as consequências de certas hipóteses sem que possam, entretanto, testar essas presunções em relação aos acontecimentos reais. A falha lógica nessas construções hipotéticas de eventos futuros é sempre a mesma: aquilo que parece à primeira vista uma hipótese – com ou sem as suas alternativas implícitas, de acordo com o nível de sofisticação – transforma-se imediatamente, geralmente após alguns parágrafos, em um “fato”, que dá origem então a toda uma sucessão de não-fatos semelhantes, com o resultado de que o caráter puramente especulativo de toda a iniciativa cai no esquecimento. Desnecessário dizer-se, trata-se aqui não de ciência, mas de pseudociência, “a tentativa desesperada das ciências sociais e comportamentais”, nas palavras de Noam Chomsky, “de imitar as características superficiais das ciências que realmente possuem conteúdo intelectual”. E a mais óbvia e “mais profunda objeção a esse tipo de teoria estratégica não é sua utilidade limitada, mas os seus perigos, pois pode levar-nos a acreditar que temos uma compreensão dos eventos e controle sobre o seu desenrolar que não possuímos”, conforme observou Richard N. Goodwin recentemente em uma resenha que teve a rara virtude de detectar o “humor inconsciente” característico de muitas dessas teorias pseudo-científicas. Noam Chomsky in America Power and the New Mandarins, Nova Iorque, 1969; a resenha de Richard N. Goodwin do livro de Thomas C. Schelling Arms and Influence, Yale, 1966, in The New Yorker (17 de fevereiro de 1968).

Eventos, por definição, são ocorrências que interrompem processos e procedimentos de rotina; somente em um mundo onde nada de importância acontece jamais, poderia o sonho do futurólogo tornar-se realidade. As previsões do futuro nada mais são do que projeções dos processos e procedimentos automáticos do presente, isto é, de acontecimentos que provavelmente se passarão se os homens não agirem e se nada de inesperado acontecer; toda ação, por bem ou por mal, e todo acidente necessariamente destroem todo o padrão em cuja estrutura movimenta-se a previsão e onde encontra seu fundamento. (A observação de Proudhon, “A fecundidade do inesperado supera grandemente a prudência do estadista”, felizmente é ainda verdadeira. Excede ela mais obviamente os cálculos do especialista). Taxar esses acontecimentos inesperados, imprevistos e imprevisíveis de “acontecimentos fortuitos”, ou “de últimos suspiros do passado”, condenando-os a irrelevância ou à famosa “lata de lixo da história”, é o mais antigo artifício nesse campo; o artifício, sem dúvida, ajuda a esclarecer a teoria, mas ao custo de removê-la para mais longe da realidade. O perigo reside em que essas teorias são não apenas plausíveis, por fundamentarem-se em tendências realmente possíveis de se discernir, mas em que, por causa de sua consistência interior, possuem um efeito hipnótico; fazem adormecer o nosso bom senso, que nada mais é que o nosso órgão mental que se destina a perceber, compreender e lidar com a realidade e com os fatos.

Original

Under these circumstances, there are, indeed, few things that are more frightening than the steadily increasing prestige of scientifically minded brain trusters in the councils of government during the last decades. The trouble is not that they are cold-blooded enough to “think the unthinkable,” but that they do not think. Instead of indulging in such an old-fashioned, uncomputerizable activity, they reckon with the consequences of certain hypothetically assumed constellations without, however, being able to test their hypotheses against actual occurrences. The logical flaw in these hypothetical constructions of future events is always the same: what first appears as a hypothesis—with or without its implied alternatives, according to the level of sophistication—turns immediately, usually after a few paragraphs, into a “fact,” which then gives birth to a whole string of similar non-facts, with the result that the purely speculative character of the whole enterprise is forgotten. Needless to say, this is not science but pseudo-science, “the desperate attempt of the social and behavioral sciences,” in the words of Noam Chomsky, “to imitate the surface features of sciences that really have significant intellectual content.” And the most obvious and “most profound objection to this kind of strategic theory is not its limited usefulness but its danger, for it can lead us to believe we have an understanding of events and control over their flow which we do not have,” as Richard N. Goodwin recently pointed out in a review article that had the rare virtue of detecting the “unconscious humor” characteristic of many of these pompous pseudo-scientific theories.5

Events, by definition, are occurrences that interrupt routine processes and routine procedures; only in a world in which nothing of importance ever happens could the futurologists’ dream come true. Predictions of the future are never anything but projections of present automatic processes and procedures, that is, of occurrences that are likely to come to pass if men do not act and if nothing unexpected happens; every action, for better or worse, and every accident necessarily destroys the whole pattern in whose frame the prediction moves and where it finds its evidence. (Proudhon’s passing remark, “The fecundity of the unexpected far exceeds the statesman’s prudence,” is fortunately still true. It exceeds even more obviously the expert’s calculations.) To call such unexpected, unpredicted, and unpredictable happenings “random events” 01 “the last gasps of the past,” condemning them to irrelevance or the famous “dustbin of history,” is the oldest trick in the trade; the trick, no doubt, helps in clearing up the theory, but at the price of removing it further and further from reality. The danger is that these theories are not only plausible, because they take their evidence from actually discernible present trends, but that, because of their inner consistency, they have a hypnotic effect; they put to sleep our common sense, which is nothing else but our mental organ for perceiving, understanding, and dealing with reality and factuality.