Arendt (CH:§16) – Trabalho, Intrumentos e Ferramentas

Tradução

É verdade que o enorme aperfeiçoamento de nossas ferramentas de trabalho – os robôs mudos com os quais o homo faber acorreu em auxílio do animal laborans, em contraposição aos instrumentos humanos dotados de fala (o instrumentum vocale, como eram chamados os escravos no lar, entre os antigos), os quais o homem de ação tinha de dominar e oprimir sempre que desejava liberar o animal laborans de sua sujeição – tornou o duplo trabalho da vida, o esforço de sua manutenção e a dor de gerá-la, mais fácil e menos doloroso do que jamais foi antes. Isso, naturalmente, não eliminou a compulsão da atividade do trabalho, nem a condição de sujeição da vida humana à carência e à necessidade. Mas, ao contrário do que ocorria na sociedade escravista, na qual a “maldição” da necessidade era uma realidade muito vívida porque a vida de um escravo testemunhava diariamente o fato de que a “vida é escravidão” essa condição já não é hoje inteiramente manifesta; e, por não aparecer tanto, torna-se muito mais difícil notá-la ou lembrá-la. O perigo aqui é óbvio. O homem não pode ser livre se ignora estar sujeito à necessidade, uma vez que sua liberdade é sempre conquistada mediante tentativas, nunca inteiramente bem-sucedidas, de libertar-se da necessidade. E, embora possa ser verdade que seu impulso mais forte na direção dessa liberdade é sua “repugnância à futilidade” é também possível que o impulso enfraqueça à medida que essa “futilidade” parece mais fácil e passa a exigir menor esforço. Pois é ainda provável que as enormes mudanças da revolução industrial, no passado, e as mudanças ainda maiores da revolução atômica, no futuro, permaneçam como mudanças do mundo, e não mudanças da condição básica da vida humana na Terra.

As ferramentas e instrumentos, que podem suavizar consideravelmente o esforço do trabalho, não são produtos do trabalho, mas da obra; não pertencem ao processo do consumo, mas são parte integrante do mundo de objetos de uso. Não importa quão relevante seja o papel que desempenham no trabalho de qualquer civilização dada, jamais pode atingir a importância fundamental das ferramentas para todo tipo de obra. Nenhuma obra pode ser produzida sem ferramentas, e o nascimento do homo faber e o surgimento de um mundo de coisas feito pelo homem são, na verdade, contemporâneos da descoberta de ferramentas e de instrumentos. Do ponto de vista do trabalho, as ferramentas reforçam e multiplicam a força humana até quase substituí-la, como ocorre em todos os casos nos quais as forças naturais, como os animais domésticos, a força hidráulica ou a eletricidade, e não meras coisas materiais, são domadas pelo homem. Da mesma forma, as ferramentas aumentam a fertilidade natural do animal laborans e produzem uma abundância de bens de consumo. Mas todas essas mudanças são de natureza quantitativa, ao passo que a qualidade das coisas fabricadas, desde o mais simples objeto de uso até a obra-prima de arte, depende profundamente da existência de instrumentos adequados.

Além disso, as limitações dos instrumentos no tocante à suavização do trabalho da vida – o simples fato de que os serviços de um único criado jamais podem ser inteiramente substituídos por uma centena de aparelhos na cozinha ou por meia dúzia de robôs no subsolo – são de natureza fundamental. Um testemunho curioso e inesperado desse fato é que ele pôde ser previsto milhares de anos antes de se dar o fabuloso desenvolvimento moderno de instrumentos e de máquinas. Em tom meio fantasioso e meio irônico, Aristóteles imaginou, certa vez, aquilo que se tornou realidade tempos depois, ou seja, que “cada ferramenta fosse capaz de executar sua própria obra quando se lha ordenasse (…) como as estátuas de Dédalo ou as trípodes de Hefesto que, segundo diz o poeta, ‘ingressaram por conta própria na assembleia dos deuses’” Assim, a “lançadeira teceria e o plectro tocaria a lira sem que uma mão os guiasse” E prossegue afirmando que isso significaria realmente que o artífice já não necessitaria de assistentes humanos, mas não que os escravos domésticos pudessem ser dispensados. Pois os escravos não são instrumentos para fabricar coisas, ou para a produção, mas para a vida, que constantemente consome os seus serviços.1 O processo de fabricação de uma coisa é limitado, e a função do instrumento atinge um fim previsível e controlável no produto acabado; o processo vital que exige o trabalho é uma atividade interminável, e o único “instrumento” à sua altura teria de ser um perpetuum mobile, isto é, o instrumentum vocale, tão vivo e ativo quanto o organismo a que serve. “Dos instrumentos domésticos nada resulta além do uso da própria posse”; e é precisamente por isso que eles não podem ser substituídos pelas ferramentas e instrumentos do artífice, “dos quais resulta algo além do mero uso do instrumento”2.

[ARENDT, Hannah. A Condição Humana.Tr. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense, 2020 (epub)]

Original

  1. Aristóteles, Política, 1253b30-1254a18.[↩]
  2. Winston Ashley, The theory of natural slavery, according to Aristotle and St. Thomas, Capítulo 5.[↩]
Excertos de ,

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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