Arendt (CH:§12) – a ação é fútil

Roberto Raposo

Diferentes tanto dos bens de consumo quanto dos objetos de uso há, finalmente, os “produtos” da ação e do discurso que constituem juntos a textura das relações e dos assuntos humanos. Por si mesmos, são não apenas destituídos da tangibilidade das outras coisas, mas são ainda menos duráveis e mais fúteis que o que produzimos para o consumo. Sua realidade depende inteiramente da pluralidade humana, da presença constante de outros que possam ver e ouvir e, portanto, atestar sua existência. Agir e falar são ainda manifestações externas da vida humana, e esta só conhece uma atividade que, embora relacionada com o mundo exterior de muitas maneiras, não se manifesta nele necessariamente, nem precisa ser ouvida, vista, usada ou consumida para ser real: a atividade de pensar.

Vistos, porém, em sua mundanidade, a ação, o discurso e o pensamento têm muito mais em comum entre si que qualquer um deles tem com a obra ou com o trabalho. Por si próprios, não “produzem” nem geram coisa alguma: são tão fúteis quanto a vida. Para que se tornem coisas mundanas, isto é, feitos, fatos, eventos e modelos de pensamentos ou ideias, devem primeiro ser vistos, ouvidos e lembrados, e então transformados em coisas, reificados, por assim dizer – em recital de poesia, na página escrita ou no livro impresso, em pintura ou escultura, em algum tipo de registro, documento ou monumento. Todo o mundo factual dos assuntos humanos depende, para sua realidade e existência contínua, em primeiro lugar da presença de outros que tenham visto e ouvido e que se lembram; e, em segundo lugar, da transformação do intangível na tangibilidade das coisas. Sem a lembrança e sem a reificação de que a lembrança necessita para sua realização – e que realmente a tornam, como afirmavam os gregos, a mãe de todas as artes –, as atividades vivas da ação, do discurso e do pensamento perderiam sua realidade ao fim de cada processo e desapareceriam como se nunca houvessem existido. A materialização que eles devem sofrer para que de algum modo permaneçam no mundo ocorre ao preço de que sempre a “letra morta” substitui algo que nasceu do “espírito vivo” e que realmente, durante um momento fugaz, existiu como “espírito vivo” Têm de pagar esse preço porque são de natureza inteiramente não mundana, e, portanto, requerem o auxílio de uma atividade de natureza completamente diferente; dependem, para sua realidade e materialização, da mesma manufatura (workmanship) que constrói as outras coisas do artifício humano.

A realidade e a confiabilidade do mundo humano repousam basicamente no fato de que estamos rodeados de coisas mais permanentes que a atividade por meio da qual foram produzidas, e potencialmente ainda mais permanentes que as vidas de seus autores. A vida humana, na medida em que é construtora-de-mundo (world-building), está empenhada em um constante processo de reificação; e o grau de mundanidade das coisas produzidas, cuja soma total constitui o artifício humano, depende de sua maior ou menor permanência no mundo.

Original

ARENDT, H. The human condition. 2nd ed ed. Chicago: University of Chicago Press, 1998. [HC:§12]

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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