Uma estranha pobreza de descrições fenomenológicas contrasta com a abundância de análises conceptuais do nosso tempo. É um fato curioso que seja ainda um punhado de obras filosóficas e literárias escritas entre 1915 e 1930 a constituir a chave da sensibilidade da época, que a última descrição convincente do nosso estado de alma e dos nossos sentimentos remonte, em suma, a mais de cinquenta anos. É certo que, no segundo pós-guerra, o existencialismo francês (e, na sua pegada, o cinema europeu do fim dos anos 1950) tentou fazer uma revisão em grande escala dos estados de alma fundamentais ; mas não é menos certo que ela – quase instantaneamente – se tornou incrivelmente insípida e obsoleta. Nem a náusea sartriana nem o absurdo cinzento das personagens de Camus acrescentaram, a nosso ver, algo à caracterização heideggeriana da angústia e das outras Stimmungen (estados de alma ; disposição interior) em Sein und Zeit (Ser e Tempo) ; e se quisermos procurar uma imagem do nosso desenraizamento e da nossa miséria social é ainda à descrição da cotidianidade em Sein und Zeit ou aos romances de Joseph Roth ou aos breves e febris apontamentos da “Viagem através da inflação alemã”, de Walter Benjamin que temos de recorrer. Quanto à fenomenologia do amor, ninguém conseguiu acrescentar muito às páginas da Recherche que lhe fixaram, pela última vez, a facies hippocratica, nem nunca a vergonha e a promiscuidade reencontraram, para nós, a épica concisão das pequenas narrativas de Kafka.
(AGAMBEN, Giorgio. Ideia da prosa. Tr. João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012)