Agamben (1995:III-6.1) – o estado de coma

Henrique Burigo

6.1 Em 1959, dois neurofisiólogos franceses, P. Mollaret e M. Goulon, publicaram na Revue Neurologique um breve estudo no qual acrescentavam à fenomenologia do coma até então conhecida uma nova e extrema figura, que eles definiam como coma dépassé (além-coma, se podería traduzir). Ao lado do coma clássico, caracterizado pela perda das funções da vida de relação (consciência, mobilidade, sensibilidade, reflexos) e pela conservação das funções da vida vegetativa (respiração, circulação, termorregulaçâo), a literatura médica daqueles anos distinguia, de fato, um coma vígil, em que a perda das funções de relação não era completa, e um coma carus, no qual a conservação das funções de vida vegetativa era gravemente perturbada. “A estes três graus tradicionais de coma” — escreviam provocatoriamente Mollaret e Goulon —- “sugerimos acrescentar um quarto grau, o coma dépassé…, ou seja, o coma no qual à abolição total das funções da vida de relação corresponde uma abolição igualmente total das funções da vida vegetativa” (Mollaret e Goulon, 1959, p. 4).

A formulação propositadamente paradoxal (um estágio da vida além da cessação de todas as funções vitais) sugere que o além-coma era o fruto integral (a rançon, como o definem os autores, com o termo que indica o resgate ou o preço exorbitante pago por alguma coisa) das novas técnicas de reanimação (respiração artificial, circulação cardíaca mantida através de perfusão endovenosa de adrenalina, técnicas de controle da temperatura corpórea etc.). A sobrevivência do além-comatoso, de fato, cessava automaticamente logo que os tratamentos de reanimação eram interrompidos: à completa ausência de toda reação aos estímulos que caracterizava o coma profundo seguia-se então o imediato colapso cardio-vascular e a cessação de todo movimento respiratório. Se, contudo, os tratamentos de reanimação eram mantidos, a sobrevivência podia prolongar-se enquanto o miocárdio, a esta altura independente de toda aferência nervosa, era ainda capaz de contrair-se com um ritmo e uma energia suficientes para assegurar a vascularização das outras vísceras (em geral, não mais que alguns dias). Mas se tratava verdadeiramente de uma “sobrevivência”? O que era aquela zona da vida que jazia além do coma? quem ou o que é o além-comatoso? “Diante destes infelizes” — escrevem os autores — “que encarnam os estados que definimos com o termo coma dépassé, quando o coração continua a bater, dia após dia, sem que se produza o mais leve despertar das funções da vida, o desespero acaba por vencer a piedade e a tentação de apertar o interruptor liberador torna-se lancinante” (Ibidem, p. 14).

[AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua. Tr. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, p. 167-168]

Original

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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