A obra de arte literária – Prefácio de Maria Manuela Saraiva (2)

A obra de arte literária – Prefácio de Maria Manuela Saraiva (2)
Roman Ingarden, A Obra de Arte Literária. Tradução de Albin E. Beau, Maria Conceição Puga e João F. Barrento. Prefácio de Maria Manuela Saraiva.

[b]§ 1. Ingarden e Husserl[/b]

Ingarden foi discípulo de Husserl em Göttingen, a partir de 1909 aproximadamente, e segue-o para Freiburg, onde este ensinou desde 1916 até ao fim da sua carreira docente.

Largos anos de convívio pessoal e uma comunicação de idéias que a separação não quebrou e se traduz por numerosos artigos sobre Husserl e por uma volumosa correspondência mantida quase até à morte do fundador da fenomenologia, em 1938 (Supomos, por indicações do Prefácio de 1930, que Ingarden permaneceu um ou dois anos em Freiburg. O que perfaz cerca de oito anos de «aprendizagem» husserliana.).

Da profunda marca deixada pelo professor e amigo no jovem estudante polaco que, por volta dos dezoito anos, chega a Göttingen para conhecer o autor das Logische Untersuchungen, é a presente obra testemunho irrefutável. Influência profunda que se alia a não menor independência de espírito. Ê esta a sorte comum de todos os grandes iniciadores. Mas talvez só eles mereçam ter discípulos dissidentes…

O debate entre Realismo e Idealismo (que, segundo Ingarden, é o horizonte último dentro do qual se investiga a essência da obra literária), as sérias reservas feitas ao idealismo transcendental e outras posições do filósofo polaco só se podem entender à luz da doutrina das Investigações Lógicas e da evolução de Husserl durante o chamado período de Göttingen (1901-1916). Esta evolução surpreendeu a maioria dos seus adeptos da primeira fase; H. Spiegelberg, que conheceu muitos deles pessoalmente, fala mesmo de consternação, «consternação crescente».

No começo do século, em 1900 e 1901, Husserl publica os dois volumes de wna das obras que marcarão profundamente esse mesmo século, as Investigações Lógicas, cuja repercussão no mundo intelectual alemão foi enorme. E precisamente em 1901 deixa Halle e é nomeado professor em Göttingen. Atraídos pela leitura deste livro, pelo prestígio do seu autor, começam, por volta de 1905, a chegar à célebre cidade universitária os primeiros discípulos, estudantes ou jovens professores. Entre eles, Adolf Reinach, Johannes Daubert, Moritz Geiger, Theodor Conrad, Hedwig Conrad-Martius, Wilhelm Schapp, Alexander Koyré, Jean Héring, Roman Ingarden, Edith Stein e outros. A guerra de 14 dispersa definitivamente estes primeiros ouvintes e críticos que, entretanto, formaram «círculos fenomenológicos» em Munique e em Göttingen. Mas a «Primavera fenomenológica», como J. Héring chamou a esta época de intensa vitalidade e entusiasmo, declina muito antes, se a entendermos como adesão sem reservas. Husserl nunca teve a equipa de investigadores que desejou, trabalhando sistematicamente segundo o seu plano e o seu método n. Não falando já das defecções célebres de Max Scheler e de Heidegger, esta numa fase posterior, o primeiro choque que alertou o ainda reduzido grupo de fenomenólogos-aprendizes foi o curso de Verão de 1907, que ficou inédito até 1947. Aí aparece, segundo os comentadores actuais, o primeiro esboço da redução transcendental. Por outras palavras, aí começa Husserl a abrir caminho para a verdadeira fenomenologia, que tem o seu acto oficial de nascimento em 1913 com a publicação do vol. I das Idéias para uma Fenomenologia Pura e Filosofia Fenomenológica.

Em 1929, R. Ingarden trabalhava no presente estudo quando aparece Lógica Formal e Transcendental, onde o idealismo husserliano é confirmado uma vez mais; a esta obra se refere no Prefácio de 1930, para sublinhar com júbilo os pontos de convergência entre o seu pensamento e o do antigo mestre, para recusar, com certa subtileza mas de maneira inequívoca, o idealismo transcendental. Este é, de facto, quanto a nós, a opção filosófica de baseado método fenomenológico, da fenomenologia tal como Husserl a concebeu. Mas esta recusa, que não é só de Ingarden, como vimos, vem de muito antes!

Podemos imaginar sem custo o jovem estudante polaco chegando a Göttingen, por volta de 1910, trazendo na bagagem as Investigações Lógicas (é ele quem o diz, algures) e verificando que o seu autor ultrapassara já a fase atingida por essa obra, fase pré-transcendental em que apenas se propusera estabelecer com rigor as bases de uma nova lógica e em que (herança do positivismo, já decadente, mas com muita força ainda) tentara manter-se numa neutralidade filosófica em relação ao Idealismo como ao Realismo.

Esta neutralidade, aliás, é discutível. Entre os especialistas de Husserl há quem veja, hoje, nas Investigações uma orientação idealista. Mas a primeira reacção foi diferente. E Husserl contribuiu muito para essa interpretação ao dizer «com uma ironia séria»: «Os verdadeiros positivistas somos nós!»

A fenomenologia das Investigações Lógicas ou a ilusão das terceiras vias! A Primavera de Göttingen ou o desmoronar de mal-entendidos que, mais uma vez, Husserl foi o primeiro a criar com a sua famosa palavra de ordem: Zu den Sachen selbst! Nada que não sejam as próprias coisas (die Sachen selbst), vistas em si mesmas e com um olhar novo. . . A intuição.. . A pura descrição das essências — e, para começar, das essências ou idéias lógicas.

Hegel provisoriamente expulso da circulação na Alemanha, Freud ensaiando os primeiros passos, Nietzsche, o obscuro, a poucos acessível, Kierkegaard ainda não descoberto senão no seu país, onde ninguém é profeta: a cena filosófica está vazia. Cansados dum kantismo que sobrevivia em comentários de comentários ou em secundárias ramificações de escola, dum positivismo redutor e pobre, duma psicologia adolescente, ingênua e aguerrida que se julgava o centro do universo, compreende-se que os primeiros leitores e ouvintes de Husserl vissem nele o que os franceses viram em Bergson: um renovador. Um renovador que afirma a necessidade de regressar ao concreto, à experiência imediata: a intuição das essências; que recusa opções metafísicas; que introduz uma certa ordem na lógica, anexada pela psicologia; que forja ou renova noções que se consideram chaves capazes de abrir todas as portas. Antes de mais, a noção de intencionalidade.

Infelizmente para os primeiros entusiastas, em 1907 e em 1913 Husserl dá dois grandes passos na direcção do idealismo transcendental. Regresso a Kant ou a algo de muito parecido com a filosofia de Kant? Infidelidade ao ideal da fenomenologia como ciência rigorosa? Repúdio de uma concepção supostamente realista do princípio de intencionalidade?

Husserl é um eterno iniciador. Em cada obra se renova, em cada estudo recomeça a caminhada infatigável para fundar a filosofia. Um projecto inicial que se mantém, alargando-se sempre, em cada fase uma versão nova da fenomenologia. Ê por isso que encontramos hoje tantas fenomenologias diferentes: a de Sartre, a de Merleau-Ponty e, muito antes, a de Reinach, a de Pfander, a de Nicolai Hartmann, a de Max Scheler. A de Roman Ingarden.

O mestre forneceu os materiais de base. Com eles, cada um dos ouvintes ou leitores muito cedo foi para o seu canto trabalhar, erguer a sua tenda. A de Ingarden é uma entre tantas outras.

Destrinçar o que nela há de autenticamente husserliano e de elaboração pessoal, repetimos, seria matéria para um estudo profundo e extenso. Aqui, temos de nos limitar a abrir caminhos. Mas o que foi dito permite ir um pouco mais longe.

Nas suas linhas gerais, o problema põe-se mais ou menos nestes termos: enquanto Husserl se renova constantemente, Ingarden, de certa maneira, parou ao nível das Investigações Lógicas e de Idéias, muito mais perto da primeira que da segunda obra.

Não que Husserl fosse a única influência recebida. Igualmente importantes foram as de Pfander e de Bergson. E o leitor pode verificar por si a numerosa lista de outros autores citados neste volume. Também não pensamos que Ingarden tenha aceitado em bloco as Investigações, pois se afasta delas em pontos importantes. Sabemos, por outro lado, que é bom conhecedor de escritos posteriores de Husserl, publicados ou inéditos, alguns dos quais são aqui referidos. Queremos dizer que os problemas que mais fundamente o tocaram e suscitaram a sua reflexão vêm das Investigações Lógicas e de Idéias. É dentro da problemática destas obras que se move, do seu conteúdo ou do impacto por elas produzido — dos aplausos, dúvidas, perplexidades, críticas, interpretações várias que suscitaram.

Quer as aceite, quer as rejeite ou discuta, é dentro deste horizonte que se mantém. Um exemplo do primeiro caso, o «fantasma» do psicologismo; do segundo, o debate entre Realismo e Idealismo.

Diremos uma palavra sobre cada um deles, começando pelo último.

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

Designed with WordPress