A ideia de fenômeno em Sartre

J.-P. Sartre, L’Être et le Néant, Gallimard, 1943, pp. 11-12 et 14. Tr. Paulo Perdigão

VIDE Análise de Florent Gaboriau

Certo é que se eliminou em primeiro lugar esse dualismo que no existente opõe o interior ao exterior. Não há mais um exterior do existente, se por isso entendemos uma pele superficial que dissimulasse ao olhar a verdadeira natureza do objeto. Também não existe, por sua vez, essa verdadeira natureza, caso deva ser a realidade secreta da coisa, que podemos pressentir ou supor mas jamais alcançar, por ser “interior” ao objeto considerado. As aparições que manifestam o existente não são interiores nem exteriores: equivalem-se entre si, remetem todas as outras aparições e nenhuma é privilegiada. A força, por exemplo, não é um conatus 1 metafísico e de espécie desconhecida que se disfarçasse detrás de seus efeitos (acelerações, desvios etc.): é o conjunto desses efeitos. Analogamente, a corrente elétrica não tem um reverso secreto: não é mais que o conjunto das ações físico-químicas que a manifestam (eletrólise, incandescência de um filamento de carbono, deslocamento da agulha do galvanômetro etc.). Nenhuma dessas ações basta para revelá-la. Nem indica algo a trás dela: designa a si mesma e a série total. Segue-se,· evidentemente, que o dualismo do ser e do aparecer não pode encontrar legitimidade na filosofia. A aparência remete à série total das aparências e não a uma realidade oculta que drenasse para si todo o ser do existente. E a aparência, por sua vez, não é uma manifestação inconsistente deste ser. […] Porque o ser de um existente é exatamente o que o existente aparenta. Assim chegamos à ideia de fenômeno como pode ser encontrada, por exemplo, na “Fenomenologia” de Husserl ou Heidegger: o fenômeno ou o relativo-absoluto. O fenômeno continua a ser relativo porque o “aparecer” pressupõe em essência alguém a quem aparecer. Mas não tem a dupla relatividade da Erscheinung 2 kantiana. O fenômeno não indica, como se apontasse por trás de seu ombro, um ser verdadeiro que fosse, ele sim, o absoluto. O que o fenômeno é, é absolutamente, pois se revela como é. Pode ser estudado e descrito como tal, porque é absolutamente indicativo de si mesmo.

Ao mesmo tempo vai acabar a dualidade de potência e ato. Tudo está em ato. Por trás do ato não há nem potência, nem hexis, nem virtude […] Por isso, enfim, podemos igualmente rejeitar o dualismo da aparência e da essência. A aparência não esconde a essência, mas a revela: ela é a essência. A essência de um existente já não é mais uma virtude embutida no seio deste existente: é a lei manifesta que preside a sucessão de suas aparições, é a razão da série. […] […] a aparição não remete ao ser tal como o fenômeno kantiano ao númeno. Já que nada tem por trás e só indica a si mesma (e a série total das aparições), a aparição não pode ser sustentada por outro ser além do seu, nem poderia ser a tênue película de nada que separa o ser-sujeito do ser-absoluto. Se a essência da aparição é um “aparecer” que não se opõe a nenhum ser, eis aqui um verdadeiro problema: o do ser desse aparecer. Problema esse que vai nos ocupar aqui, ponto de partida de nossas investigações sobre o ser e o nada.

 

  1. Em latim: impulso (N. do T.).[↩]
  2. Vocábulo alemão designando fenômeno (N. do T.).[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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