Para ele (Heidegger), o modelo de toda a estranheza (Unheimlichkeit), a estranheza da referência, é o do Ser em relação ao ente. O Ser, enquanto acontecimento, dádiva, significado, é “absolutamente outro” que cada ente, embora esteja oculto nele — a nossa relação com o Ser é necessariamente obscurecida pela nossa relação com o ente. A compreensão da estranheza é, pois, antes de mais, essencialmente, a compreensão da “diferença ontológica” entre o Ser e o ente. Mas desta diferença propriamente dita a autenticidade só é acessível no elemento da transcendência: este novo termo técnico do heideggerianismo designa o “sair-de-si” que o Dasein fundamentalmente é. Para Heidegger, o problema filosófico husserliano, que é também o problema de uma certa epistemologia (como pode o sujeito, no encerramento da sua experiência e da sua linguagem, alcançar, conhecer o mundo exterior, o em-si fora de si mesmo) é um falso problema: o “sujeito” já saiu sempre de si mesmo, já é sempre ser-no-mundo, e é isto que Heidegger quer recordar-nos ao falar de Dasein em vez de sujeito. Finalmente, para completar esta apresentação sumária do pensamento de Heidegger, a transcendência, o ser-fora-de-si do Dasein, é essencialmente temporalização (Zeitlichkeit): o “sair-de-si” é modulado em três ek-stases, correspondentes às três dimensões classicamente atribuídas ao tempo:
“O tempo é em si mesmo, como futuro, como ter sido e como presente, extático. O Dasein, como futuro, é extático na direção do seu poder-ser, como passado, na direção do seu ter sido, como presentificação, na direção de um outro ente.” [GA24:321]
Esta temporalização é originária: devemos compreender que, para Heidegger, as três ek-stases são anteriores à constituição do “reta temporal”, de um tempo de referência no qual os fenômenos podem ser inscritos: a constituição deste tempo simultaneamente “vulgar” e “científico” é possível pela temporalização originária, é compreendida em termos dela.
O importante, para nós, é que transcendência e temporalização fundamental são a mesma coisa para Heidegger: sair em direção à alteridade dura, à alteridade não relativizável, a do Ser em última análise, mas que se nos apresenta como a alteridade do Ser em relação ao ente, como diferença ontológica, é temporalizar.
Mas, na relação com o espaço, trata-se fundamentalmente de uma questão de ser-em-si: a intuição kantiana é essa função do “sujeito” que “acolhe” a diversidade exterior, que torna possível a presentificação do que é outro; e na diferença entre o espaço como forma abrangente/infinita e cada diversidade exterior espacializada, não temos uma figura de diferença ontológica? Deste ponto de vista, e se a relação com o espaço é a geometria, podemos compreender, graças a uma leitura simultaneamente kantiana e heideggeriana, que a geometria está inexoravelmente enredada na temporalização.
Só nos sentiremos tentados a objetar: a temporalização original heideggeriana é quotidiana, fenomenológica, íntima, ao passo que a temporalização geométrica, recuperada por Gonseth no seu livro, é “disciplinar”, realiza-se ao nível daquilo a que se chama a história das ideias.
Mas é precisamente a ideia de Heidegger de que a temporalização original não é apenas uma camada fenomenológica a ser encontrada sob a nossa experiência quotidiana, através de um inquérito necessariamente introspectivo e existencial (por exemplo, perguntando-nos, como Sein und Zeit 1 nos convida a fazer, sobre a nossa experiência de angústia), é também o que por excelência tece o tecido da história das ideias. As ideias são epoché; os grandes esquemas conceituais são formas de uma cultura se aproximar de algo que celebra, de tal modo que a transmissão de algo anterior está sempre em curso, e a exigência de que algo seja retomado de forma diferente no futuro é sempre ouvida. E, a este nível, é absurdo entender as três “tensões” do tempo em relação a um modelo preestabelecido da linha reta temporal: são antes as tensões da ideia em relação à sua proveniência, ao seu futuro e ao seu enigma (as ek-stases) que constituem o tempo da história das ideias. Costumamos exprimir este ponto dizendo que a história das ideias é necessariamente uma história intrínseca, ou dizendo que ela se preocupa apenas com as ligações lógicas (nomeadamente de anterioridade ou posterioridade lógicas) entre as fases da aventura da ideia. Em termos heideggerianos, diríamos que a história das ideias está interessada na historialidade da ideia e não na sua historicidade, se esta última for entendida como a pertença da ideia a um sistema causal instalado no tempo objetivo. É perfeitamente normal, se pensarmos bem, que a temporalização originária de Heidegger, uma vez que se supõe independente da identificação temporal ordinária, não esteja ligada a uma escala desta última, e que possa ser “encontrada” tanto na escala da existência quotidiana como na escala daquela espécie de contemporaneidade determinada pelas ideias na medida em que são epocais, a escala epocal em termos heideggerianos.