Ricoeur: Confiança mútua médico e paciente

Porque é que é preciso partir do nível prudencial? É este o momento de lembrar as situações em que se aplica a virtude da prudência. O seu domínio é o das decisões tomadas em situações singulares. Enquanto a ciência, afirma Aristóteles, diz respeito ao universal, a technê diz respeito ao particular. Isto é eminentemente verdadeiro na situação em que a profissão médica intervém, a saber, o sofrimento humano. O sofrimento é, tal como o prazer, o último reduto da singularidade. Por outro lado, diga-se de passagem, é a razão da distinção, no interior da bioética, entre o ramo orientado para a clínica e o ramo orientado para a investigação biomédica, sem esquecer as interferências de que falaremos à frente. É verdade que o sofrimento não diz respeito apenas à prática médica; ele afecta e desorganiza não apenas a relação de si consigo próprio enquanto [cada um é] portador de uma variedade de poderes e também de uma multiplicidade de relações com os outros, no âmbito da família, do trabalho e de uma grande variedade de instituições; mas a medicina é uma das práticas baseadas numa relação social para a qual o sofrimento é a motivação fundamental e o telos [finalidade] é a esperança de obter ajuda e talvez ser curado. Por outras palavras, a prática médica é a única prática que tem como foco a saúde física e mental. No fim deste estudo, retornaremos à variedade de significações ligadas à noção de saúde. No início desta investigação dou por adquiridas as expectativas ordinárias, aliás discutíveis, ligadas à noção de saúde como uma forma de bem-estar e de felicidade. Na base dos juízos prudenciais encontra-se, pois, a estrutura relacionai do acto médico: o desejo de ser liberto do fardo do sofrimento e a esperança de ser curado constituem a motivação maior da relação social que faz da Medicina uma prática de um gênero particular, cuja instituição se perde na noite dos tempos.

Dito isto, podemos ir directamente ao coração da problemática. Qual é, perguntamos nós, o nó ético de este encontro singular? É o pacto de confidencialidade que os compromete um com o outro, este paciente concreto com este médico concreto. Neste nível prudencial ainda não se fala de contrato nem de segredo médico, mas de pacto de cuidados assente na confiança. Ora este pacto conclui um processo original. No princípio, um fosso e mesmo uma dissimetria notável separa os dois protagonistas: de um lado aquele que sabe e sabe fazer, do outro aquele que sofre. Este fosso é preenchido, e as condições iniciais tomadas mais iguais, por uma série de procedimentos com origem nos dois polos da relação. O paciente – este paciente – “traz à linguagem” o seu sofrimento pronunciando-o como lamento, o qual comporta uma componente descritiva (tal sintoma… ) e uma componente narrativa (um indivíduo enredado nesta e naquela história… ). Por seu turno, o lamento concretiza-se como pedido: peço qualquer coisa… (a cura e, quem sabe, saúde e, porque não?, em pano de fundo, a imortalidade) e peço a… dirigido como um apelo a tal médico. Sobre este pedido enxerta-se a promessa de cumprir, uma vez admitido o protocolo do tratamento proposto.

Situado no outro polo, o médico faz a outra metade do caminho da “igualização das condições”, pelas quais Tocqueville definia o espírito da democracia, passando por estádio sucessivos de admissão da sua clientela, da formulação do diagnóstico e, enfim, do pronunciamento da prescrição. Estas são as fases canônicas do estabelecimento do pacto de cuidados que, ligando duas pessoas, ultrapassa a dissimetria inicial do encontro. A fiabilidade do acordo deverá ainda ser posta à prova de parte a parte atrás do compromisso do médico em “seguir” o seu paciente e o do paciente em se “conduzir” como agente do seu próprio tratamento. O pacto de cuidados torna-se assim uma espécie de aliança selada entre duas pessoas contra o inimigo comum, a doença. O acordo deve o seu carácter moral à promessa táctica partilhada pelos dois protagonistas de cumprir fielmente os respectivos compromissos. Esta promessa tácita é constitutiva do estatuto prudencial do juízo moral implícito no “acto de linguagem” da promessa.

Nunca insistiríamos demais, desde logo, sobre a fragilidade deste pacto. O contrário da confiança é a desconfiança ou a suspeita. Ora este contrário acompanha todas as fases da instauração do contrato. A confiança é ameaçada, do lado do paciente, por uma mistura impura entre a desconfiança a propósito do presumido abuso de poder por parte de todo o membro do corpo médico e pela suspeita de que o médico, por hipótese, não corresponderá à expectativa insensata posta na sua intervenção: ou o paciente pede demais (acabámos de fazer alusão ao desejo de imortalidade), mas desconfia do excesso de poder daquele mesmo no qual coloca uma confiança excessiva. Quanto ao médico, os limites impostos ao seu compromisso, fora de toda a negligência ou indiferença presumida, aparecerão mais à frente quando falarmos da intrusão quer das ciências biomédicas que tendem para a objectivação e reificação do corpo humano, quer da intrusão da problemática da saúde pública, que se prende com o aspecto não mais individual, mas colectivo, do fenômeno geral da saúde. Esta fragilidade do pacto de confiança é uma das razões da transição do plano prudencial para o plano deontológico do juízo moral.

Todavia, gostaria de dizer que a despeito do seu carácter íntimo, o pacto de cuidados não é está desprovido de recursos de generalização que justificam o próprio termo de prudência ou de sabedoria prática ligado a este nível do juízo moral. Chamámos a este juízo intuitivo porque ele procede do ensino e da prática. Mas chamar prudencial o nível de compromisso moral ligado ao pacto de cuidados não é, contudo, entregá-lo aos acasos da benevolência. Assim como toda a arte, praticada caso a caso, tal juízo gera, precisamente a favor do ensino e do exercício, o que se pode chamar preceitos para não falarmos ainda de normas que colocam o juízo prudencial na via do juízo deontológico.

Tenho por primeiro preceito da sabedoria prática exercida do ponto de vista médico o reconhecimento do carácter singular da situação de cuidados, em primeiro lugar, da situação do próprio paciente. Esta singularidade implica o carácter insubstituível de uma pessoa em relação a outra, o que exclui, entre outras coisas, a reprodução por clonagem de um mesmo indivíduo; a diversidade das pessoas humanas faz com que não seja a espécie aquilo de que se cuida, mas sempre em cada vez um exemplar único do gênero humano. O segundo preceito sublinha a indivisibilidade da pessoa; não são múltiplos órgãos que são tratados, mas um doente integral, se assim se pode dizer; tal preceito opõe-se à fragmentação que tanto a diversidade das doenças e a sua localização no corpo como à especialização correspondente dos saberes e das competências; opõe-se do mesmo modo a um outro gênero de clivagem entre o biológico, o psicológico e o social. O terceiro preceito acrescenta às ideias de insubstituibilidade e de indivisibilidade, uma outra, já mais reflexiva: a da estima de si. Este preceito diz mais do que o respeito devido ao outro; ele procura equilibrar o carácter unilateral do respeito, ao ir do mesmo ao outro mediante o reconhecimento do seu valor próprio por parte do próprio sujeito. É para si mesmo que vai a estima; ora a situação de cuidados, em particular nas condições de hospitalização, encoraja demasiado a regressão por parte do doente a comportamentos de dependência e, do lado do pessoal cuidador, a comportamentos ofensivos e humilhantes para a dignidade do doente.

É precisamente na ocasião desta recaída na dependência que se fortifica a perniciosa mistura de exigência excessiva e desconfiança latente que corrompe o pacto de cuidados. Assim, é sublinhada de outra maneira a fragilidade, que tratámos acima, do pacto de cuidados. Este implica idealmente uma co-responsabilidade dos dois parceiros do pacto. Ora a regressão a uma situação de dependência, a partir do momento em que se entra na fase dos tratamentos pesados e em situações que se podem dizer letais, tende insidiosamente a restabelecer a situação de desigualdade da qual a constituição do pacto de cuidados era suposto afastar-se. É essencialmente o sentimento de estima pessoal que fica ameaçado pela situação de dependência que prevalece no hospital. A dignidade do paciente não é apenas ameaçada ao nível da linguagem, mas por todas as concessões à familiaridade, à trivialidade, à vulgaridade nas relações quotidianas entre os membros do pessoal médico e as pessoas hospitalizadas. A única maneira de lutar contra estes comportamentos ofensivos é retornar à exigência de base do pacto de cuidados, a saber, a associação do paciente à conduta do seu tratamento, em outros termos, ao pacto que faz da medicina e do paciente aliados na sua luta comum contra a doença e o sofrimento. Insisto ainda uma vez mais no conceito de estima de si, que situo ao nível prudencial, reservando para o do respeito para o nível deontológico. Na estima de si a pessoa humana aprecia ela própria existir e exprime a necessidade de se saber apreciada no seu existir pelos outros. A estima de si dá assim um toque de amor-próprio, de orgulho pessoal à relação de si a si mesmo: é o fundo ético daquilo que chamamos correntemente dignidade.