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Marques Cabral (2017) – A presença de Heidegger em Bultmann

quarta-feira 23 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

A presença de Heidegger em Bultmann   não se dá pela simples reprodução, por parte de Bultmann  , de conceitos e problemas heideggerianos. Deve-se observar que dificilmente encontraremos textos de Bultmann   onde há alguma reconstrução filosófica dos conceitos e sobretudo contextos hermenêuticos heideggerianos. Podemos até dizer que muitas vezes Bultmann   operacionaliza conceitos de Heidegger, ainda que destacados do seu projeto ontológico maior, como a ontologia fundamental, no caso de Ser e tempo  , ou a hermenêutica da facticidade, que atravessa diversos textos da década de 1920. Contudo, essa simples operacionalização não explica radicalmente a presença de Heidegger em Bultmann  . Antes, se nos detivermos nesse modo de abordagem do problema, estaremos reinscrevendo a noção de causalidade na historicidade do pensamento. Isso porque perceberíamos que a obra de Bultmann   só é ela mesma pela influência de Heidegger. Tal influência seria uma espécie de causa explicativa do movimento de realização da obra bultmanniana. Em outras palavras: Heidegger seria a causa eficiente da obra de Bultmann  , pensamento este que reinsere a tendência e (im) postura metafísicas de explicar a originalidade de um autor pela relação causai (portanto, pela relação com algum elemento exterior) com aquele que de algum modo o precedeu. Nesse sentido, Platão   é a causa eficiente da obra de Aristóteles  ; Descartes   seria a razão suficiente de Leibniz  , Kant   e Hegel  ; [256] Schopenhauer   seria a causa da obra nietzschiana e assim por diante. Isso certamente é impossível. A singularidade de uma obra não é explicada por qualquer relação causai com seus predecessores, nem com elementos psicológicos subjetivos. Como afirmamos na introdução, não se pode negar o caráter tradicional de todo pensamento, que está contaminado por laços históricos, portanto, está sempre referido a uma relação essencial com o passado. Todavia, tal relação, no caso dos pensadores, sempre se estrutura por meio de uma apropriação criativa, o que significa dizer que a singularidade de um autor depende de um modo também singular de incorporação de elementos provenientes do passado da tradição. Para tanto, é preciso que o pensador em questão deixe despontar o seu horizonte hermenêutico, de onde parte a sua apropriação do passado ou de conceitos alheios. À medida que tal apropriação começa a se determinar, o legado apropriado (sobretudo os conceitos de outros autores) é inscrito na singularidade de um outro horizonte hermenêutico, muitas vezes gerando uma metamorfose radical dos significados dos conceitos e problemas apropriados. É justamente isso que acontece com a apropriação bultmanniana de Heidegger. Não há uma cópia da obra heideggeriana   em Bultmann  . Dito de outro modo: Bultmann   não é um heideggeriano, caso entendamos esse adjetivo como sinônimo do estudioso reprodutor da obra de Heidegger. Bultmann   não é, de modo algum, um comentador de Heidegger e nunca pretendeu sê-lo. Antes disso, Bultmann   é teólogo e, como tal, move-se no horizonte hermenêutico próprio da (sua) teologia. Por isso, Bultmann   apropria-se de Heidegger para vir a ser o teólogo que ele se tomou. Ora, poder-se-ia dizer, então, que Heidegger está em Bultmann   por causa dos conceitos que este operacionaliza da obra heideggeriana  . Isso, entretanto, não é tão simples como parece, pois os conceitos que Bultmann   operacionaliza da obra heideggeriana  , grande parte das vezes, podem ser encontrados em Kierkegaard   e, como se sabe, Bultmann   era leitor de Kierkegaard   e Heidegger também. Podemos supor, então que, primeiramente, Bultmann   encontrou em Kierkegaard   algo que reencontraria, sob nova formulação, em Heidegger. [257] Bultmann   teria, nesse sentido, se apropriado, ainda que de modo não consciente, de um Heidegger mitigado ou de um Heidegger kierkeggardianizado, o que certamente não é improvável, uma vez que, como já afirmado na introdução, Bultmann   se interessa pelos conceitos existenciais de Heidegger e não pelo projeto ontológico que atravessa a obra heideggeriana  . Esses conceitos, muitas vezes, já estão, de algum modo, presentes em Kierkegaard  . Nesse sentido, a presença de Heidegger em Bultmann   deve ser evidenciada de outro modo.

Antes de tudo, e essa é a primeira parte da hipótese dessa investigação, Heidegger está em Bultmann   através do modo como Bultmann   usa a filosofia no seu labor teológico. Bultmann   operacionaliza a ideia heideggeriana   de que a filosofia deve relacionar-se com a teologia como elemento corretivo. Por outro lado, e esse é o segundo aspecto da nossa hipótese, Heidegger atravessa a obra bultmanniana por meio da relação analógica entre desmitologização e destruição. Dessa forma, Bultmann   teria criado um procedimento hermenêutico análogo ao procedimento, também hermenêutico, da destruição fenomenológica. Deve-se observar que a nossa hipótese não se encontra desenvolvida nas obras de Heidegger e Bultmann  .


Ver online : Rudolf Bultmann


MARQUES CABRAL, Alexandre. Heidegger em Bultmann : da destruição fenomenológica à desmitologização teológica. Rio de Janeiro : Via Verita, 2017