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Gadamer (VM): tema da hermenêutica

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Já na análise da hermenêutica romântica tivemos ocasião de ver que a compreensão não se baseia em um deslocar-se para o interior do outro, em uma participação imediata de um no outro. Compreender o que alguém diz é, como já vimos, pôr-se de acordo sobre a coisa, não deslocar-se para dentro do outro e reproduzir suas vivências. Já destacamos que a experiência de sentido, que ocorre desse modo na compreensão, encerra sempre um momento de aplicação. Percebemos agora que todo este processo é um processo linguístico. Não é em vão que a verdadeira problemática da compreensão e a tentativa de dominá-la pela arte — o tema da hermenêutica — pertence tradicionalmente ao âmbito da gramática e da retórica. A linguagem é o meio em que se realiza o acordo dos interlocutores e o entendimento sobre a coisa. 2081 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Não compreendo essas considerações. A diferença entre a linguagem dos especialistas e a linguagem corrente existe desde séculos. Será que a matemática é algo novo? E o que sempre definiu o especialista, o Xamã e o médico não foi o fato de que eles nunca lançaram mão de recursos de entendimento que não fossem compreensíveis para todos? O que podemos ver como um problema moderno extremado é que o especialista já não considera ser tarefa sua traduzir seu saber para a linguagem comum corrente, de modo que essa tarefa de integração hermenêutica seria uma tarefa particular. Mas com isso a tarefa hermenêutica como tal não se modifica em nada. Ou será que com isso Habermas quer dizer apenas que poderíamos "compreender" construções teóricas, como por exemplo no campo da matemática e da ciência natural matemática atual, sem os recursos da linguagem corrente? Isso é indiscutível. Seria absurdo afirmar que toda nossa experiência de mundo não seria nada mais que um processo de linguagem, e que por exemplo o desenvolvimento de nosso senso para as cores consistiria apenas na diferenciação no uso das palavras referidas à cor. E mesmo conhecimentos genéticos, como por exemplo os de Piaget, aos quais se refere Habermas e que tornam provável a existência de um uso de categorias operacionais prévias à linguagem, mas também todas as formas de comunicação desprovidas de linguagem, a cerca das quais chamaram a atenção sobretudo Helmuth Plessner  , Michael Polanyi e Hans Kunz, desqualificam qualquer tese que queira negar outras formas de compreensão fora do âmbito da linguagem apelando para uma universalidade da linguagem. Falar é, ao contrário, sua existência comunicada. Mas mesmo na comunicabilidade da compreensão encontra-se embutido o tema da hermenêutica, como reconhece corretamente Habermas (p. 77). Se quisermos evitar uma disputa por palavras, devemos renunciar a muitos rodeios e não supor que os sistemas de signos artificiais devam ser "compreendidos" no mesmo sentido em que nossa interpretação de mundo feita na linguagem é uma interpretação compreensiva. Tampouco se poderá dizer que as ciências naturais formulam seus enunciados sobre "as coisas" sem "observar-se no espelho dos discursos humanos". Quais são as "coisas" que a ciência natural conhece? A pretensão da hermenêutica é e continua sendo integrar na unidade da interpretação de mundo feita na linguagem o que aparece como incompreensível ou como não "compreensível" para todos, mas apenas para "iniciados". O fato de a ciência moderna ter desenvolvido suas próprias linguagens, específicas e técnicas, e sistemas artificiais de símbolos, procedendo dentro dos mesmos "monologicamente", isto é, alcançando a "compreensão" e o "entendimento" à margem de toda comunicação do linguajar corrente, não pode ser levado a sério como uma objeção contra essa pretensão. O próprio Habermas, que faz tal objeção, sabe muito bem que essa "compreensão" e especialização, que constitui também o pathos   do engenheiro social moderno e dos especialistas, carece da reflexão que lhe permitiria alcançar responsabilidade social. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

A palavra "hermenêutica" é antiga. Mas também a coisa que ela designa, tanto faz se hoje é retratada como interpretação, exposição, tradição ou simplesmente compreensão, é muito anterior à ideia de uma ciência metodológica como a construída na época moderna. Mesmo o uso moderno da linguagem ainda reflete algo de peculiar dualidade e ambivalência na perspectiva teórica e prática, sob as quais encontra-se o tema da hermenêutica. No final do século XVIII e princípios do XIX a ocorrência da palavra "hermenêutica" em casos particulares em alguns escritores mostra que o uso da expressão — provavelmente provinda da teologia — era corrente e designava somente a faculdade prática de compreender, isto é, uma perspicácia sutil e intuitiva para conhecer os demais. Era algo que se elogiava muito no diretor espiritual, por exemplo. Encontrei essa palavra no escritor alemão Heinrich Seume (que estudara com Morus em Leipzig) e em Johann Peter Hebel. Mas o próprio Schlei-ermacher, o promotor da nova evolução da hermenêutica na linha da metodologia geral das ciências do espírito, indica expressamente que a arte da compreensão não é necessária somente para o trato com textos, mas também no trato com pessoas. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.

A ciência pode fazer muitas objeções a isso. Desde há muito a hermenêutica é uma parte constitutiva da teologia. Sobretudo com a crítica feita pela teologia dialética à linguagem sobre Deus, e desde que a teologia histórica do liberalismo assumiu a tarefa de harmonizar sua própria pretensão científica com o sentido querigmático da Sagrada Escritura e com sua interpretação, surgiu de novo a problemática hermenêutica. Assim, Rudolf Bultmann  ", adversário ferrenho de toda teoria da inspiração e de toda exegese pneumática, e mestre do método histórico, reconheceu a relação ontológica prévia que o sujeito tem com o texto que procura compreender. Fez isso, na medida em que, na relação do crente com a Sagrada Escritura descobriu uma "pré-compreensão" inerente à [430] existência humana que se manifesta na pergunta por Deus. Quando adotou o lema da desmitologização, procurando liberar o núcleo querigmático do Novo Testamento e salvar assim a Sagrada Escritura do estranhamento histórico, Bultmann estava seguindo na verdade um velho princípio hermenêutico. Isso porque é evidente que o verdadeiro objetivo dos escritos do Novo Testamento é sua mensagem de salvação e que esses escritos devem ser lidos à luz dessa mensagem. Foram sobretudo alguns discípulos que radicalizaram o tema da hermenêutica redescoberto por Bultmann. Ernst   Fuchs  , com um livro que reuniu de forma genial a reflexão e a exegese, e Gerhard Ebeling, partindo sobretudo da hermenêutica luterana. Ambos falam de um "acontecimento de linguagem" próprio da fé, buscando afastar do sentido salvífico da tradição bíblica qualquer objetivismo indiferente, na linha do mito ou do fato histórico. Mesmo que não faltem contra-reações na teologia moderna, esses estímulos obrigam a consciência hermenêutica a progredir não só na teologia protestante, mas também na católica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.