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Gadamer (VM): sentido hermenêutico

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

É interessante ver que esta frase se encontra num contexto hermenêutico, como aliás, nesse escrito erudito, a sapientia Salomonis representa o último objeto e a mais elevada instância do conhecimento. Trata-se do capítulo sobre a utilização (usus) do sensus communis  . Aqui Oetinger volta-se contra a teoria hermenêutica dos wolffianos. Mais importante do que todas as regras hermenêuticas, é que seja um sensu plenus. Uma tal tese é, naturalmente, um extremo espiritualista, possui, no entanto, seu fundamento lógico no conceito da vita  , ou seja, do sensus communis. Seu sentido hermenêutico pode ser ilustrado através da frase: "As ideias que se encontram nas Escrituras Sagradas e nas obras de Deus são tanto mais frutuosos e puros quanto o individual se reconhece no todo e o todo no individual". O que se gostava de denominar de intuition, nos séculos XIX e XX, é aqui reconduzido ao seu fundamento metafísico, isto é, à estrutura do ser vivo e orgânico, que em cada indivíduo quer ser o todo: cyclus vitae centrum suum in corde habet, quod infinita simul percipit per sensum communem (praef.). VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

É claro que poder-se-ia tentar escapar dessa consequência, dizendo que basta saber que os textos religiosos só devem ser compreendidos como textos que respondem à questão a respeito de Deus. Não exigir-se-ia do intérprete nenhuma motivação religiosa. Mas qual seria a opinião   de um marxista, que considera que toda afirmação religiosa só é compreendida, quando é revelada como jogo de interesses das relações de domínio social? Evidentemente o marxista não aceitará o pressuposto de que a existência humana como tal é movida pela questão a respeito de Deus. Esse pressuposto só vale para aquele que já reconheceu nisso a alternativa da crença ou não-crença face ao Deus verdadeiro. Por isso tenho a impressão de que o sentido hermenêutico da pré-compreensão teológica é, ele próprio, teológico. A própria história da hermenêutica mostra como o questionamento de um texto está determinado por uma pré-compreensão muito concreta. A hermenêutica moderna, como disciplina protestante, tem, enquanto arte da interpretação da Escritura, uma relação polêmica para com a tradição dogmática da igreja católica e sua doutrina da justificação pelas obras. Tem pois, ela própria, um sentido dogmático e confessional. Isso não quer dizer que uma hermenêutica teológica desse tipo parta [338] de preconceitos dogmáticos, de tal modo que somente lê no texto o que ela própria aí colocou. Antes, ela própria se põe realmente em jogo. Mas o que pressupõe é que a palavra da Escritura atinge verdadeiramente, e que somente a compreende aquele a quem a sua verdade afeta, quer na fé, quer na dúvida. Nesse sentido, a aplicação é a primeira. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Todo escrito é, como já vimos, uma espécie de fala alheada, que necessita da reconversão de seus signos à fala e ao sentido. Essa reconversão se coloca como o verdadeiro sentido hermenêutico, porque através da escrita ocorre ao sentido uma espécie de auto-alheamento. O sentido do que foi dito tem de voltar a ser enunciado unicamente com base na literalidade transmitida pelos signos escritos. Ao inverso do que ocorre com a palavra, a interpretação do escrito não dispõe de outra ajuda. Por isso é, aqui, tão importante a "arte" de escrever. É assombroso até que ponto a palavra falada se interpreta a si mesma, pelo modo de falar, o tom, a cadência etc, assim como pelas circunstâncias nas quais se fala. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Esse é o interesse   dogmático positivo que cunha a conceituação de Bultmann   e não o interesse por um Iluminismo progressista. Seu conceito de mito é um conceito puramente descritivo. Traz consigo algo de histórico e casual e, por mais fundamental que seja o problema teológico alojado no conceito de uma desmitologização do Novo Testamento, trata-se de uma questão de exegese prática, que não atinge em hipótese alguma o princípio hermenêutico de toda exegese. Seu sentido hermenêutico restringe-se sobretudo a constatar que não se pode fixar dogmaticamente nenhum conceito determinado de mito, pelo qual se pudesse determinar de uma vez por todas o que o Iluminismo científico poderia e o que não poderia expurgar da Sagrada Escritura como mero mito para o homem moderno. Não é a partir da ciência moderna, mas positivamente a partir da aceitação do querigma, a partir da reivindicação interna da fé, que se deve determinar o que seja um mero mito. Um outro exemplo dessa "desmitologização" é precisamente a grande liberdade que possuía e promovia o poeta grego diante da tradição mítica de seu povo. Também essa liberdade não é "Iluminismo". O poeta exerce sua força espiritual e seu direito crítico baseado num fundamento religioso. Basta lembrar-nos de Píndaro   ou de Ésquilo  . Isso explica a necessidade de se refletir sobre a relação entre fé e compreensão, à luz da liberdade do jogo. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

Os debates que travei com os mais jovens, sobretudo com Habermas, ensinaram-me que a intentio   obliqua do crítico da ideologia detecta "preconceitos conservadores" também nos destaques que eu faço. Analisando essa opinião supostamente justificada, comprovei qual o sentido hermenêutico poderia ter o preconceito conservador, ou seja, conscientizar sobre as muitas pressuposições evidentes de que se lança mão sempre que se dá diálogo. Giegel cita meu conservadorismo, que eu reconheço. Mas ele interrompe a citação onde principia sua tese. Essa postula que assim se possibilitam determinados conhecimentos. O meu interesse estava unicamente na possibilidade de conhecimento. Mas a única coisa sobre o que se pode discutir é se realmente é verdade o que eu penso ter averiguado com esses pressupostos. Giegel, partindo de seus pressupostos antagônicos, parece-me chegar ao mesmo resultado e concordar plenamente comigo de que Habermas atribui um falso poder à reflexão. O que o levou a criticar Habermas foram provavelmente as mesmas experiências a que eu me referi, embora com valoração oposta. Ele concretiza essa crítica justamente no revisionismo de Bernstein. Por isso faz sentido que Giegel, a partir de sua concepção de hermenêutica, alegue contra ela: "a hermenêutica provavelmente não poderá despertar desse sonho (da solidariedade que une a todos) pela contracrítica, mas apenas pelo desenvolvimento da própria luta revolucionária". Não me parece que essa frase contenha alguma contribuição para o debate… VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.