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Gadamer (VM): questão hermenêutica

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

No entanto, também existem escritos que, por assim dizer, se lêem por si mesmos. Existe um sugestivo debate sobre o espírito e a letra na filosofia, realizado por dois grandes escritores filosóficos alemães, Schiller   e Fichte  , que parte deste fato. Parece-me significativo o fato de que com os critérios estéticos empregados por um ou outro não se consegue vislumbrar uma conciliação para a disputa em questão. É que, no fundo, o problema não é o da estética do bom estilo, mas o da questão hermenêutica. A "arte" de escrever de maneira que as ideias do leitor se vejam estimuladas e se mantenham produtivamente em movimento, têm pouco a ver com os demais meios usuais das artes retóricas ou estéticas Ao contrário, consiste, por inteiro, em que nos vejamos, também nós, conduzidos a pensar o pensado. A "arte" de escrever não pretende ser aqui entendida e considerada como tal. A arte de escrever, tal como a de falar, não representa um fim em si e não é portanto objeto primário do esforço hermenêutico. A compreensão ganha encaminhamento por completo através do próprio assunto. Esta é a razão pela qual os pensamentos confusos e o que está "mal" escrito não são, para a tarefa do compreender, casos paradigmáticos nos quais a arte hermenêutica brilharia em todo seu esplendor, mas, pelo contrario, casos-limite, nos quais começa a balançar o pressuposto sustentador do êxito hermenêutico, que é a univocidade do sentido entendido. 2141 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

O problema é realmente universal. Como eu a caracterizei, a questão hermenêutica não se restringe aos âmbitos de investigação que serviram de ponto de partida. Importava para mim assentar uma base teórica que pudesse sustentar também o fato fundamental de nossa cultura atual, a ciência e sua utilização técnica industrial. Um exemplo útil para vermos como a dimensão hermenêutica abrange a totalidade dos procedimentos da ciência é a estatística. Como um exemplo extremo, a estatística ensina que a ciência encontra-se constantemente sob determinadas condições metodológicas abstratas e que os resultados positivos das ciências modernas consistem em bloquear outras possibilidades interrogativas pela abstração. Na estatística isso se mostra de maneira muito clara, porque, ao conceber previamente as perguntas a serem respondidas, lança mão de objetivos propagandísticos. O que se destina a ter um efeito propagandístico deve influenciar sempre e de antemão o julgamento dos que são consultados, buscando restringir sua capacidade de julgamento. O que se verifica, então, parece ser a linguagem dos fatos. Mas a questão hermenêutica busca saber quais são as perguntas a que respondem esses fatos e quais são os fatos que começariam a mostrar-se se fossem feitas outras perguntas. A hermenêutica deveria legitimar primeiro a significação desses fatos e com isso as consequências que se derivam da persistência dos mesmos. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.

Nesse ponto, o conceito de sentido defendido pela filosofia idealista da identidade foi funesto. Ele reduziu a competência da reflexão hermenêutica à chamada "tradição cultural", seguindo a linha de Vico que só considerava compreensível para os homens o que era feito por estes. A reflexão hermenêutica, que representa o ponto central de toda minha investigação, tenta mostrar justamente que esse conceito da compreensão de sentido é errôneo, e nessa perspectiva tive de restringir também a famosa determinação de Vico. Parece-me que tanto Apel quanto Habermas fincam pé nesse sentido idealístico do compreender o sentido, que nada tem a [471] ver com o ductus de minha análise. Não foi por acaso que orientei a minha investigação pela experiência da arte, cujo "sentido" não pode ser esgotado pela compreensão conceitual. O fato de eu ter desenvolvido o questionamento de uma hermenêutica filosófica universal, tomando como ponto de partida a crítica à consciência estética e refletindo sobre a arte — e não partindo imediatamente do âmbito das chamadas ciências do espírito — não significa, de modo algum, um arrefecimento diante da exigência de método na ciência. Significa antes uma primeira medição do alcance que possui a questão hermenêutica e que não busca primeiramente designar certas ciências como hermenêuticas, mas trazer à luz uma dimensão que precede a todo uso do método na ciência. E por isso que a experiência da arte tornou-se importante em muitos aspectos. O que significa essa superioridade temporal   que a arte reivindica como conteúdo de nossa consciência estética formativa? Surge então uma dúvida: Será que essa consciência estética que a "arte" tem em mente — como ocorre com o próprio conceito de "arte", elevado ao caráter pseudo  -religioso — não representa uma diminuição de nossa experiência da obra de arte, tal como a consciência histórica e o historicismo são uma diminuição da experiência histórica? E igualmente intempestiva? VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.