O trabalho que se realizou até agora, nesse terreno, determinado sobretudo pela fundamentação hermenêutica das ciências do espírito de Wilhelm Dilthey e suas investigações sobre a gênese da hermenêutica, fixou as dimensões do problema hermenêutico, a seu modo. Nossa tarefa atual poderia ser a de tentar subtrair-nos da influência dominante do questionamento diltheyano e dos preconceitos da “história do espírito”, fundada por ele. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Se reconhecermos como tarefa seguir mais Hegel do que Schleiermacher, teremos de acentuar a história da hermenêutica de um modo totalmente novo. Esta já não terá sua realização na liberação da compreensão histórica de todos os pressupostos dogmáticos, e já não poder-se-á considerar a gênese da hermenêutica sob o aspecto em que a apresentou Dilthey, seguindo os passos de Schleiermacher. Nossa tarefa, antes, será refazer o caminho aberto por Dilthey, atendendo a objetivos diversos dos que ele tinha em mente com a sua autoconsciência histórica. Nesse sentido desviar-nos-emos inteiramente do interesse dogmático pelo problema hermenêutico que o Antigo Testamento despertou já na igreja antiga, e nos contentaremos em palmilhar o desenvolvimento do método hermenêutico na Idade Moderna, que desemboca da consciência histórica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Isso implica bem mais do que uma tensão do problema hermenêutico da compreensão do que foi fixado por escrito à compreensão do discurso em geral — percebe-se aqui um deslocamento de caráter fundamental. O que deve ser compreendido não é a literalidade das palavras e seu sentido objetivo, mas também a individualidade de quem fala e, consequentemente, do autor. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Diante do pano de fundo dessa análise existencial da pre-sença, com todas as suas amplas e mal exploradas consequências para os interesses da metafísica geral, de repente o círculo de problemas da hermenêutica das ciências do espírito porta-se totalmente diferente. Nosso trabalho tem por escopo desenvolver esse novo aspecto do problema hermenêutico. Na medida em que Heidegger ressuscita o tema do ser e, com isso, ultrapassa toda a metafísica precedente — e não somente o seu ponto mais alto no cartesianismo da ciência moderna e da filosofia transcendental — ganha ele, face às aporias do historicismo, uma posição fundamentalmente nova. O conceito da compreensão já não é mais um conceito metódico como em Droysen. A compreensão não é, tampouco, como na tentativa de Dilthey de fundamentar hermeneuticamente as ciências do espírito, uma operação que só se daria posteriormente na direção inversa, ao impulso da vida rumo à idealidade. Compreender é o caráter ôntico original da própria vida humana. Se, a partir de Dilthey, Misch tinha reconhecido no “livre distanciamento de si mesmo” uma estrutura fundamental da vida humana, sobre a qual repousa toda a compreensão, a reflexão ontológica radical de Heidegger procura cumprir a tarefa de esclarecer essa estrutura da pre-sença mediante uma “analítica transcendental da pre-sença”. Revelou o caráter de projeto que reveste toda compreensão e pensou a própria compreensão como o movimento da transcendência, da ascensão acima do ente. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Heidegger oferece uma descrição fenomenológica completamente correta, quando descobre no suposto “ler” o que “lá está” a pré-estrutura da compreensão. Oferece também um exemplo para o fato de que disso se segue uma tarefa. Em Ser e tempo concretiza a proposição universal, que ele converte em problema hermenêutico, na questão do ser. Com o fim de explicitar a situação hermenêutica da questão do ser, segundo posição prévia, visão prévia e concepção prévia, examina criticamente a questão que ele coloca à metafísica, em momentos essenciais, onde a história da metafísica sofreu uma guinada. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Seguindo a teoria dos preconceitos desenvolvida no Aufklärung, pode-se encontrar a seguinte divisão básica dos mesmos: é preciso distinguir os preconceitos gerados pelo respeito humano, dos preconceitos por precipitação. Essa divisão tem seu fundamento na origem dos preconceitos, na perspectiva das pessoas que os cultivam. O que nos induz a erros é o respeito pelos outros, por sua autoridade, ou a precipitação que existe em nós mesmos. O fato de que a autoridade seja uma fonte de preconceitos coincide com o conhecido princípio fundamental do Aufklärung, tal como o formula Kant: tenha coragem de te servir de teu próprio entendimento. Embora a decisão, citada acima, não se restrinja somente ao papel que os preconceitos desempenham na compreensão dos textos, ela encontra seu campo de aplicação preferencial também no âmbito hermenêutico. Pois a crítica do Aufklärung se dirige, em primeiro lugar, contra a tradição religiosa do cristianismo, portanto, a Sagrada Escritura. Enquanto que esta é compreendida como um documento histórico, a crítica bíblica põe em perigo sua pretensão dogmática. Nisso se apoia a radicalidade peculiar do Aufklärung moderno, face a todos os outros movimentos do Aufklärung: que ele tem de se impor frente à Sagrada Escritura e sua interpretação dogmática. Por isso lhe é particularmente central o problema hermenêutico. Procura compreender a tradição corretamente, isto é, isenta de todo preconceito e racionalmente. Mas isso traz uma dificuldade muito especial, pelo mero fato de que a fixação por escrito contém em si própria um momento de autoridade de peso (277) determinante. Não é fácil consumar a possibilidade de que o escrito não seja verdade. O escrito tem a palpabilidade do que é demonstrável, é como uma peça comprobatória. Torna-se necessário um esforço crítico especial para que nos liberemos do preconceito cultivado a favor do escrito e distinguir, tanto aqui, como em qualquer afirmação oral, entre opinião e verdade . Seja como for, a tendência geral do Aufklärung é não deixar valer autoridade alguma e decidir tudo diante do tribunal da razão. Assim, a tradição escrita, a Sagrada Escritura, como qualquer outra informação histórica, não podem valer por si mesmas. Antes, a possibilidade de que a tradição seja verdade depende da credibilidade que a razão lhe concede. A fonte última de toda autoridade já não é a tradição mas a razão. O que está escrito não precisa ser verdade. Nós podemos sabê-lo melhor. Essa é a máxima geral com a qual o Aufklärung moderno enfrenta a tradição, e em virtude da qual acaba ele mesmo convertendo-se em investigação histórica. Torna a tradição objeto da crítica, tal qual o faz a ciência da natureza com os testemunhos da aparência dos sentidos. Isso não significa que o “preconceito contra os preconceitos” deva ser levado em tudo às consequências do espiritualismo livre e do ateísmo, como na Inglaterra e na França. O Aufklärung alemão reconheceu de modo absoluto “os preconceitos verdadeiros” da religião cristã. Dado que a razão humana seria demasiado débil para passar sem preconceitos, teria sido uma sorte se tivesse sido educada nos preconceitos verdadeiros. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
O problema epistemológico deve ser colocado aqui de uma forma fundamentalmente diferente. Já mostramos acima que Dilthey chegou a compreender isso, porém, não conseguiu superar os liames que o fixavam à teoria do conhecimento tradicional. Seu ponto de partida, a interiorização das “vivências”, não pode construir a ponte para as realidades históricas, porque as grandes realidades históricas, sociedade e estado, são sempre, na verdade, determinantes prévios de toda “vivência”. A auto-reflexão e a autobiografia — pontos de partida de Dilthey — não são fatos primários e não bastam como base para o problema hermenêutico, porque por eles a história é reprivatizada. Na realidade, não é a história que pertence a nós mas nós é que a ela pertencemos. Muito antes de que nós compreendamos a nós mesmos na reflexão, já estamos nos compreendendo de uma maneira auto-evidente na família, na sociedade e no Estado em que vivemos. A lente da subjetividade é um espelho deformante. A auto-reflexão do indivíduo não é mais que uma centelha na corrente cerrada da vida histórica. Por isso os preconceitos de um indivíduo são, muito mais que seus juízos, a realidade histórica de seu ser. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Este é o ponto de partida do problema hermenêutico. Por isso havíamos examinado o descrédito do conceito do preconceito no Aufklärung. O que, sob a ideia de uma autoconstrução absoluta da razão, se apresenta como um preconceito limitador, é parte integrante, na verdade, da própria realidade histórica. Se se quer fazer justiça ao modo de ser finito e histórico do homem, é necessário levar a cabo uma drástica reabilitação do conceito do preconceito e reconhecer que existem preconceitos legítimos. Com isso a questão central de uma hermenêutica verdadeiramente histórica, a questão epistemológica fundamental, pode ser formulada: em que pode basear-se a legitimidade de preconceitos? Em que se diferenciam os preconceitos (282) legítimos de todos os inumeráveis preconceitos cuja superação representa a inquestionável tarefa de toda razão crítica? VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Este conceito da compreensão rompe, evidentemente, o círculo traçado pela hermenêutica romântica. Na medida em que já não se refere à individualidade e suas opiniões, mas à verdade da coisa, um texto não é entendido como mera expressão vital, mas é levado a sério na sua pretensão de verdade. O fato de que também isso, ou até precisamente isso, se chame “compreender” era antes uma obviedade — nisso recordo-me da citação de Chladenius. No entanto, a dimensão do problema hermenêutico foi desacreditada pela consciência histórica e pela versão psicológica que Schleiermacher deu à hermenêutica, e só pôde ser recuperada quando se tornaram patentes as aporias do historicismo e quando estas conduziram finalmente àquela mudança de rumo, nova e fundamental, para a qual, na minha opinião, o trabalho de Heidegger deu o mais decisivo impulso. Pois a distância de tempo em sua produtividade hermenêutica só pôde ser pensada a partir da mudança de rumo ontológico que Heidegger deu à compreensão como um “existencial” e a partir da interpretação temporal que aplicou ao modo de ser da pre-sença. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Essa experiência levou a investigação histórica à conclusão de que um conhecimento objetivo só pode ser alcançado a partir de uma certa distância histórica. É verdade que o que está numa coisa, o conteúdo que lhe é próprio, somente se divisa a partir da distância com relação à atualidade, surgida de circunstâncias efêmeras. A possibilidade de adquirir uma certa visão panorâmica, o caráter relativamente fechado sobre si, de um processo histórico, o seu distanciamento com relação às opiniões objetivas que dominam o presente, tudo isso são, até certo ponto, condições positivas da compreensão histórica. A pressuposição tácita do método histórico é, pois, que o significado objetivo e permanente de algo somente se torna reconhecível quando pertence a um nexo mais ou menos concluído. Noutras palavras: quando está suficientemente morto para que já tenha somente interesse histórico. Somente então parece possível desconectar a participação subjetiva do observador. Na verdade, isto é um paradoxo — é o correlato, na teoria da ciência, do velho problema moral de se saber se alguém pode ser chamado feliz antes de sua morte. Assim como Aristóteles mostrou até que ponto um problema desse tipo consegue aguçar as possibilidades humanas de juízo, a reflexão hermenêutica tem que estabelecer aqui um aguçamento da autoconsciência metódica da ciência. É bem verdade que determinados requisitos hermenêuticos se satisfazem, por si sós, sem dificuldade aí onde um nexo histórico só tem ainda interesse histórico. Pois, em tal caso, há certas fontes de erro que se desconectam por si mesmas. Mas pergunta-se se com isso se esgota realmente o problema hermenêutico. A distância é a única que permite uma expressão completa do verdadeiro sentido que há numa coisa. Entretanto, o verdadeiro sentido contido num texto ou numa obra de arte não se esgota ao chegar a um determinado ponto final, pois é um processo infinito. Não acontece apenas que se vão eliminando sempre novas fontes de erro, de tal modo que se vão filtrando todas as distorções do verdadeiro sentido, mas que, constantemente, surgem novas fontes de compreensão que tornam patentes relações de sentido insuspeitadas. A distância de tempo, que possibilita essa filtragem, não tem uma dimensão concluída, já que ela mesma está em constante movimento e expansão. A par do lado negativo da filtragem operada (304) pela distância de tempo, aparece, simultaneamente, o aspecto positivo que ela tem para a compreensão. Não somente prestam sua ajuda para que os preconceitos de natureza particular feneçam, mas permite também que aqueles que levam a uma compreensão correta, venham à tona como tais. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
2.2. A retomada do problema hermenêutico fundamental VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
2.2.1. O problema hermenêutico da aplicação VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Na velha tradição da hermenêutica, que se perdeu completamente na autoconsciência histórica da teoria pós-romântica da ciência, este problema ainda ocupava um lugar sistemático. O problema hermenêutico se dividia como segue: distingue-se uma subtilitas intelligendi, compreensão, de uma subtilitas explicandi, a interpretação, e, durante o pietismo, se acrescentou como terceiro componente a subtilitas applicandi, a aplicação (por exemplo, em J.J. Rambach). Esses três momentos deviam perfazer o modo de realização da compreensão. É significativo que os três recebam o nome de subtilitas, ou seja, que se compreendam menos como um método sobre o qual se dispõe, do que como um fazer, que requer uma particular finura de espírito. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Seja como for, já vimos que o problema hermenêutico recebe um significado sistemático, no momento em que o romantismo reconhece a unidade interna de intelligere e explicare. A interpretação não é um ato posterior e oportunamente complementar à compreensão, porém, compreender é sempre interpretar, e, por conseguinte, a interpretação é a forma explícita da compreensão. Relacionado com isso, está também o fato de que a linguagem e a conceptualidade da interpretação foram reconhecidos como um momento estrutural interno da compreensão, com o que até mesmo o problema da linguagem passa de uma posição ocasional e marginal, para o centro da (313) filosofia. Mas a isso voltaremos mais tarde. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
E se isso é correto, então se coloca a tarefa de voltar a determinar a hermenêutica espiritual-científica a partir da jurídica e da teológica. Para isso faz-se necessária a ideia recém-alcançada, de que a hermenêutica romântica e sua coroação na interpretação psicológica, isto é, no deciframento e fundamentação da individualidade do outro, aborda o problema da compreensão de um modo excessivamente parcial. Nossas considerações não nos permitem dividir a colocação do problema hermenêutico na subjetividade do intérprete e na objetividade de sentido que se trata de compreender. Esse procedimento partiria de uma falsa contraposição que tampouco pode ser superada pelo reconhecimento da dialética do subjetivo e do objetivo. A distinção entre uma função normativa e uma função cognitiva faz cindir, definitivamente, o que claramente é uno. O sentido da lei, que se apresenta em sua aplicação normativa, não é, em princípio, diferente do sentido de um tema, que ganha validez na compreensão de um texto. É completamente errôneo fundamentar a possibilidade de compreender textos na pressuposição da “congenialidade” que uniria o criador e o intérprete de uma obra. Se isso fosse assim, as ciências do espírito estariam em maus lençóis. O milagre da compreensão consiste, antes, no fato de que não é necessária a congenialidade para reconhecer o que é verdadeiramente significativo e o sentido originário de uma tradição. Somos, antes, capazes de nos abrir à pretensão excelsa de um texto e corresponder compreensivamente ao significado com o qual nos fala. A hermenêutica, no âmbito da filologia e da ciência espiritual da história, não é um “saber dominador”, isto é, apropriação por apoderamento, mas se submete à pretensão dominante do texto. Mas para isso o verdadeiro modelo é constituído pela hermenêutica jurídica e teológica. A interpretação da vontade jurídica e da promessa divina não são evidentemente formas de domínio, mas de servidão. Ao serviço daquilo que deve valer, elas são interpretações, que incluem aplicação. A tese é, pois, que também a hermenêutica histórica tem que levar a cabo o fornecimento da aplicação, pois também ela serve à validez de sentido, na medida em que supera, expressa e conscientemente, a distância de tempo que separa o intérprete do texto, superando assim a alienação de sentido que o texto experimentou. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Nesse ponto de nossa investigação impõe-se um contexto problemático que já apontamos em mais de uma ocasião. Se o próprio núcleo do problema hermenêutico é que a tradição como tal tem de ser entendida cada vez de uma maneira diferente, então — visto sob o ponto de vista lógico — trata-se da relação entre o geral e o particular. Compreender é então um caso especial da aplicação de algo geral a uma situação concreta e particular. Com isso ganha especial relevância para nós a ética aristotélica, de que já mencionamos nas nossas considerações introdutórias à teoria das ciências do espírito. É verdade que Aristóteles não aborda o problema hermenêutico nem sua dimensão histórica, mas trata somente da apreciação correta do papel que a razão deve desempenhar na atuação ética. Mas é precisamente isto que nos interessa aqui, que ali trata-se de razão e de saber, que não estão separados do ser que deveio, mas que são determinados por este e que são determinantes para este ser. Através de sua limitação do intelectualismo socrático-platônico na questão do bem, Aristóteles funda, como se sabe, a ética como disciplina autônoma frente à metafísica. Criticando como uma generalidade vazia a ideia platônica do bem, contrapõe-lhe a questão pelo humanamente bom, aquilo que é bom para o ser humano . Na linha dessa crítica, torna-se exagerado equiparar virtude e saber, areté e logos, como ocorria na teoria socrático-platônica das virtudes. Aristóteles recoloca-os na sua verdadeira medida, mostrando que o elemento que sustenta o saber ético do homem é a orexis, a “ambição”, e sua elaboração em uma atitude firme (hexis). O conceito da ética carrega já no seu nome a relação com essa fundamentação aristotélica da areté, no exercício e no ethos. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Como vemos, o problema do método está inteiramente determinado pelo objeto — o que constitui um postulado aristotélico geral e fundamental — e, relacionado ao nosso interesse, valerá a pena considerar a relação especial entre ser ético e consciência ética tal como Aristóteles a desenvolve na sua ética. Aristóteles se mantém socrático na medida em que retém o conhecimento como momento essencial do ser ético, e o que nos interessa é justamente o equilíbrio entre a herança socrático-platônica e este momento do ethos a que ele mesmo deu validez. Pois também o problema hermenêutico se aparta evidentemente de um saber puro, separado do ser. Falamos antes da pertença do intérprete com a tradição com a qual se confronta, e víamos na própria compreensão um momento do acontecer. O enorme alheamento que caracteriza a hermenêutica e a historiografia do século XIX, em razão do método objetivador da ciência moderna, nos havia sido apresentado como consequência de uma falsa objetivação. O exemplo da ética aristotélica foi citado para tornar patente e evitar essa objetivação, pois o saber objetivo, isto é, aquele que sabe não está frente a uma constelação de fatos, que ele se limitasse a constatar, pois o que conhece o afeta imediatamente. É algo que ele tem de fazer. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Este é o ponto em que se pode relacionar a análise aristotélica do saber ético com o problema hermenêutico das modernas ciências do espírito. É verdade que na consciência hermenêutica não se trata de um saber técnico nem ético, porém, essas duas formas do saber contêm a mesma tarefa da aplicação que temos reconhecido como a dimensão problemática central da hermenêutica. Também é claro que “aplicação” não significa o mesmo em ambos os casos. Existe uma peculiaríssima tensão entre a techne que se ensina e aquela que se adquire por experiência (321). O saber prévio que alguém possui quando aprendeu um ofício não é necessariamente superior, na praxis, ao que possui um iletrado no assunto, mas muito experimentado. No entanto, ainda que isso seja assim, nem por isso se chamará “teórico” o saber prévio da techne, menos ainda se se leva em conta que a aquisição de experiência aparece por si só no uso desse saber. Pois, como saber, já intenciona sempre à praxis, e ainda que a matéria bruta nem sempre obedeça ao que aprendeu seu ofício, Aristóteles pode citar com razão as palavras do poeta: techne ama tykne, e tykne ama techne. Isso quer dizer que, em geral, o bom êxito acompanha aquele que aprendeu seu ofício. O que se adquire adiantadamente na techne é uma autêntica superioridade sobre a coisa, e isso é exatamente o que representa um modelo para o saber ético. Pois também para este é claro que a experiência nunca pode bastar para uma decisão eticamente correta. Também aqui se exige que a atuação seja guiada previamente pela consciência moral. Nem sequer será possível contentar-se com a relação insegura que há no caso da techne entre o saber prévio e o correspondente êxito final. Pode-se dizer que há uma correspondência real entre a perfeição da consciência ética e a de saber produzir, a da techne, mas, obviamente, não são a mesma coisa. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Essas considerações permitem compreender até que ponto é sutil a posição de Aristóteles frente ao problema do direito natural, da mesma forma que não se pode identificá-la com a tradição juro-naturalista dos tempos posteriores. Iremos nos contentar aqui com um pequeno esboço que permita pôr em primeiro plano a relação que existe entre a ideia do direito natural e o problema hermenêutico. Que Aristóteles não se limita a rechaçar a questão do direito natural é o que se pode concluir do que acabamos de ver. No direito positivo ele não reconhece o direito verdadeiro absoluto, mas ao menos na chamada ponderação da equidade, vê uma tarefa complementar do direito. Volta-se assim contra o convencionalismo extremado ou o positivismo jurídico, e distingue claramente entre direito natural e direito positivo. Mas a diferença que ele leva em conta não é simplesmente a da inalterabilidade do direito natural e da alterabilidade do direito positivo. É verdade que, em geral, temos entendido Aristóteles nesse sentido, mas com isso se passa por alto a verdadeira profundidade de sua concepção. Aristóteles conhece efetivamente a ideia de um direito inalterável, mas a limita expressamente aos deuses e declara que entre os homens não só é alterável o direito positivo mas também o natural. Essa alterabilidade é, segundo Aristóteles, perfeitamente compatível com o caráter “natural” desse direito. O sentido dessa afirmação me parece ser o seguinte: existem efetivamente leis jurídicas que são, inteiramente, coisa da conveniência (por exemplo, as normas de trânsito, como a de conduzir pela direita); mas existem também aquelas que não permitem uma convenção humana qualquer, porque a “natureza das coisas” tende a se impor constantemente. A essa classe de leis pode-se chamar justificadamente de “direito natural”. Na medida em que a natureza das coisas deixa uma certa margem de mobilidade para a afirmação, esse direito natural pode mudar. Os exemplos que Aristóteles apresenta, tirados de outros âmbitos, são muito elucidativos. A mão direita é, por natureza (325), a mais forte, mas nada impede que se treine a esquerda até igualá-la em força com a direita (Aristóteles apresenta evidentemente esse exemplo porque era uma das ideias preferidas de Platão). Ainda mais esclarecedor é um segundo exemplo, tomado da esfera jurídica: usa-se sempre uma e a mesma medida, mais abundante quando se compra vinho do que quando se vende. Aristóteles não quer dizer com isso que no comércio do vinho se procura normalmente enganar a outra parte, mas que essa conduta corresponde ao espaço de jogo do que é justo dentro dos limites impostos. E claramente opõe a isso que o melhor estado “é por toda parte um e o mesmo”, mas não é da mesma maneira “que o fogo arde igual em todas as partes, tanto na Grécia como na Pérsia”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Inversamente, o historiador, que não tem diante de si nenhuma tarefa jurídica, mas que pretende simplesmente averiguar o significado histórico da lei — como o faria o conteúdo de qualquer outra tradição histórica — não pode ignorar que (334) seu objeto é uma criação do direito, que tem que ser entendida juridicamente. Ele tem de poder pensar também juridicamente e não apenas historicamente. É verdade que a consideração de um texto jurídico ainda vigente é para o historiador um caso especial. Porém esse caso especial serve para deixar claro o que é que determina nossa relação com qualquer tradição. O historiador que pretende compreender a lei a partir de sua situação histórica original não pode ignorar sua sobrevivência jurídica: ela lhe fornece as questões que ele coloca à tradição histórica. E isso não vale, na realidade, para qualquer texto, que tenha de ser compreendido precisamente no que diz? Não implica isso que sempre é necessária uma tradução? E não se dá esta tradução, sempre e em qualquer caso, nos moldes de uma mediação com o presente? Na medida em que o verdadeiro objeto da compreensão histórica não são eventos, mas sim seu “significado”, esta compreensão não estará descrita corretamente, se se fala de um objeto em si e de uma aproximação do sujeito a ele. Em toda compreensão histórica sempre já está implícito que a tradição que nos chega fala sempre ao presente e tem de ser compreendida nessa mediação — mais ainda: como essa mediação. O caso da hermenêutica jurídica não é portanto um caso especial, mas está capacitado para devolver à hermenêutica histórica todo o alcance de seus problemas e reproduzir assim a velha unidade do problema hermenêutico, na qual o jurista e o teólogo se encontram com o filólogo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Com relação ao Antigo Testamento, esse é um velho problema hermenêutico. Qual é sua interpretação correta: a cristã, que parte do Novo Testamento, ou a judaica? Ou ambas são interpretações justificadas, no sentido de que existe algo comum a ambas, e é isso na realidade o que compreende a interpretação? O judeu, que compreende o texto bíblico vetero-testamentário de maneira diferente que o cristão, compartilha com este o pressuposto de que também ele é movido pela questão a respeito de Deus. Ao mesmo tempo, face às afirmações do teólogo cristão, ele será da opinião de que este não compreende adequadamente, quando limita as verdades de seu livro sagrado a partir do Novo Testamento. Nesse sentido o pressuposto de que somos movidos pela questão a respeito de Deus contém por si mesmo pretensão de conhecer o Deus verdadeiro e sua revelação. Inclusive o que se chama de “descrença” é determinado a partir da crença exigida. A pré-compreensão existencial de que parte Bultmann não pode ser outra que a cristã. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
A refutação mítica de Platão ao sofisma dialético, por mais evidente que pareça, não pode satisfazer, todavia, um pensamento moderno. Para Hegel já não há fundamentação mítica da filosofia. Para ele o mito pertence à pedagogia. Em última análise é a razão que se fundamenta a si mesma. E na medida em que Hegel elabora a dialética da reflexão como a automediação total da razão, eleva-se também ele acima do formalismo argumentativo que, de acordo com Platão, chamamos sofístico. Por isso, sua dialética contra a argumentação vazia do entendimento, que ele chama “a reflexão externa”, não é menos polêmica que a do Sócrates platônico. Por esse motivo, a confrontação com ele é tão importante para o problema hermenêutico. Pois a filosofia do espírito de Hegel pretende oferecer uma mediação total da história e do presente. Nela não se trata de um formalismo da reflexão, mas do mesmo tema a que devemos nos ater também nós. Hegel pensou até o final a dimensão histórica, na qual tem suas raízes o problema da hermenêutica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Aplicando ao problema hermenêutico a forma de comportamento com relação ao tu e de compreensão do tu, que representa o conhecimento de pessoas, achamos como correlato dele a fé ingênua no método e na objetividade que este proporciona. Aquele que compreende a tradição dessa maneira a converte em objeto, e isso significa que se confronta com ela livremente, sem ver-se afetado, e que adquire certeza com respeito ao seu conteúdo, desconectando metodicamente todos os momentos subjetivos de sua relação para com ela. Já vimos como, desse modo, ele se liberta da sobrevivência da tradição, na qual ele próprio tem sua realidade histórica. Este é o método das ciências sociais correspondente à metodológica do século XVII e sua formulação pragmática por Hume, na realidade um clichê extraído da metodologia natural-científica. Do (35) procedimento efetivo das ciências do espírito toma-se um aspecto parcial, e este reduzido esquematicamente, na medida em que só se reconhece no comportamento humano o que é típico e regular. A essência da experiência hermenêutica fica assim nivelada da mesma maneira que tivemos ocasião de perceber na interpretação teleológica do conceito da indução, desde Aristóteles. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Onde há acordo não se traduz, pois aí se fala. Entender uma língua estrangeira quer dizer justamente não ter de traduzi-la para a nossa própria língua. Quando alguém domina de verdade uma língua, não somente já não necessita de traduções, mas inclusive qualquer tradução lhe parece impossível. Compreender uma língua não é, por si mesmo, nenhum compreender real, e não encerra nenhum processo interpretativo, mas é uma realização vital. Pois, compreende-se uma língua quando se vive nela — uma frase que vale tanto para as línguas vivas como para as mortas. O problema hermenêutico não é, pois, um problema de correto domínio da língua, mas o correto acordo sobre um assunto, que ocorre no médium da linguagem. Podemos aprender qualquer língua, de maneira que seu uso pleno implique já não termos de traduzir a partir da nossa própria língua ou à nossa própria língua, mas que se possa pensar na língua estrangeira. Para que possa haver acordo numa conversação, este gênero de domínio da língua é, na realidade, uma condição prévia. Toda conversação implica. Para que possa haver acordo numa conversação, este gênero de domínio da língua é, na realidade, uma condição prévia. Toda conversação implica o pressuposto evidente de que seus membros falem a mesma língua. Só quando é possível pôr-se de acordo linguisticamente, pelo fato de uns falarem com os outros, é que se pode converter em problema a compreensão e o possível acordo. A dependência da tradução de um intérprete é um caso extremo que duplica o processo hermenêutico, (389) a conversação: É a conversação do intérprete com a parte contrária, e a própria conversação com o intérprete. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.
Convém recordar que na origem, e primordialmente, a hermenêutica tem como tarefa a compreensão dos textos. Foi somente Schleiermacher que minimizou o caráter essencial da fixação por escrito com respeito ao problema hermenêutico, quando considerou que o problema da compreensão estava dado também face ao discurso oral, e quiçá na sua plena realização. Já demonstramos até que ponto a versão psicológica, que ele introduziu na hermenêutica, abafou a autêntica dimensão histórica do fenômeno hermenêutico. Na realidade a escrita possui, para o fenômeno hermenêutico, uma significação central, na medida em que nela a ruptura com o escritor ou autor, assim como com o endereço concreto de um destinatário (396) é trazida, por assim dizer, a uma existência própria. O que se fíxa por escrito se eleva de um certo modo, à vista de todos, a uma esfera de sentido na qual pode participar todo aquele que esteja em condições de ler. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.
A vantagem metodológica do texto escrito é que nele o problema hermenêutico aparece em forma pura, e livre de todo o caráter psicológico. Mas naturalmente, o que aos nossos olhos e para a nossa intenção representa uma vantagem metodológica é ao mesmo tempo expressão de uma debilidade específica que caracteriza muito mais o escrito, do que a própria linguagem. A tarefa do compreender se coloca com particular claridade quando se reconhece a debilidade de todo o escrito. Basta para isso recordar de novo o exemplo de Platão, que via a debilidade própria do escrito no fato de que o discurso escrito jamais pode vir em ajuda daquele que sucumbe a mal-entendidos deliberados ou involuntários. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.
Objetivamente, parti de Dilthey e do problema da fundamentação das ciências do espírito, assumindo uma distância crítica frente a ele. Foi com muita dificuldade que alcancei, nesse percurso, a universalidade do problema hermenêutico, que me ocupou desde o princípio. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
Talvez aqui seja o lugar para se fazer algumas observações às ampliações e apresentações autônomas do problema hermenêutico, do modo como foram apresentadas de um lado por Hans-Robert Jauss e Manfred Frank e, por outro, por Jacques Derrida. É sem dúvida incontestável que a estética da recepção, desenvolvida por Jauss, enfocou sob uma nova luz toda uma dimensão da pesquisa literária. No entanto, será justo seu posicionamento contra o que tenho em mente com minha hermenêutica filosófica? Parece-me que a ilustração da historicidade da compreensão, que apresentei no exemplo do conceito do clássico, é mal-entendida, toda vez que atribuímos a palavra aqui ao classicismo e ao conceito vulgar de platonismo. Dá-se exatamente o contrário. O exemplo do clássico, em Verdade e método I, quer ilustrar o quanto a mobilidade histórica está incluída na atemporalidade daquilo que se chama de clássico (e que contém, todavia, um componente normativo, mas nenhuma caracterização de estilo), de tal forma que a compreensão se transforma e se renova constantemente. O exemplo do clássico, portanto, nada tem a ver com o ideal de estilo clássico e nem com o conceito vulgar de platonismo, que (14) considero uma deformação das reais intenções de Platão. Neste ponto, Oskar Becker viu melhor do que Jauss, quando me acusou, em sua crítica, de estar sendo tomado pela história, e arrolou contra mim o pitagorismo do número, do som e do sonho. Não me senti atingido, neste particular. Mas não vamos tratar disso aqui. A estética da recepção de Jauss seria, ela própria, truncada, segundo me parece, se quisesse dissolver a obra que subjaz em cada configuração receptiva em meras facetas. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
Não nos importa falar de um sentido puramente linguístico da interpretação gramatical, como se ela pudesse existir sem a interpretação psicológica. O problema hermenêutico mostra-se justamente na interpenetração da interpretação gramatical pela interpretação psicológica individualizante, na qual entram em jogo os condicionantes complexos do intérprete. Reconheço que, para isso, deveria ter observado de modo mais contundente a dialética e estética de Schleiermacher, que Frank invoca com razão. Teria feito mais justiça à riqueza da compreensão individualizante em Schleiermacher. No entanto, logo após o aparecimento de Verdade e método, consegui recuperar alguma coisa disto. Meu interesse não era apreciar Schleiermacher em todas as suas dimensões, mas caracterizá-lo como o propulsor de uma história efeitual, que se inicia justamente com Steinthal e que ao alcançar o cimo teórico-científico com Dilthey passa a dominar de maneira indiscutível. A meu ver, isso restringiu o problema hermenêutico, e esta história efeitual não é uma ficção. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
Heidegger empreendeu uma descrição fenomenológica plenamente correta ao revelar a estrutura prévia da compreensão na presumida “leitura” daquilo que “está ali”. Ele também deu um exemplo de que dali surge uma tarefa. Em Ser e tempo, concretizou na questão pelo ser o enunciado universal, elevado a um problema hermenêutico (cf. Ser e tempo, vol. II, p. 104s). Para explicitar a situação hermenêutica da pergunta pelo ser segundo a posição prévia, visão prévia e concepção prévia, examinou criticamente a questão por ele dirigida à metafísica, em momentos decisivos da história da metafísica. Com isso, acabou fazendo o que a consciência histórico-hermenêutica exige para todos os casos. Uma compreensão efetuada com consciência metodológica não buscará simplesmente confirmar suas antecipações, mas tomar consciência delas, a fim de controlá-las e com isso alcançar a compreensão correta a partir das coisas elas mesmas. É o que pensa Heidegger, quando exige que na elaboração da posição prévia, visão prévia e concepção prévia se “assegure” o tema científico a partir das coisas elas mesmas. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.
O novo impulso filosófico de Heidegger não fez sentir seus efeitos positivos apenas na teologia, mas rompeu sobretudo com a rigidez relativista e tipológica reinantes na escola de Dilthey. Deve-se a G. Misch ter liberado novamente os impulsos filosóficos de Dilthey confrontando-o com Husserl e Heidegger. Não obstante a sua construção do princípio filosófico que rege a filosofia da vida de Dilthey estabeleça uma oposição com relação a Heidegger, o retorno de Dilthey à perspectiva da “vida”, ultrapassando a “consciência transcendental”, representou um importante apoio para a elaboração filosófica de Heidegger. A publicação de diversos tratados dispersos de Dilthey, realizada por G. Misch e outros, nos volumes V-VIII, (103) assim como as instrutivas introduções de Misch, trouxeram a público pela primeira vez, nos anos 20, a obra filosófica de Dilthey, que havia sido encoberta por seus trabalhos históricos. O problema hermenêutico alcançou sua radicalização filosófica quando as ideias de Dilthey (e Kierkegaard) passaram a fundamentar a filosofia existencial. Foi quanto Heidegger formulou o conceito de uma “hermenêutica da facticidade”, impondo — em contraposição à ontologia fenomenológica da essência, de Husserl — a tarefa paradoxal de interpretar a dimensão “imemorial” (Schelling) da “existência” e inclusive a própria existência como “compreensão” e “interpretação”, ou seja, como um projetar-se para possibilidades de si próprio. Nesse momento, alcançou-se um ponto no qual o caráter instrumentalista do método, presente no fenômeno hermenêutico, teve de reverter-se à dimensão ontológica. “Compreender” não significa mais um comportamento do pensamento humano dentre outros que se pode disciplinar metodologicamente, conformando assim a um procedimento científico, mas perfaz a mobilidade de fundo da existência humana. A caracterização e ênfase que Heidegger atribui à compreensão como a mobilidade de fundo da existência culmina no conceito de interpretação, desenvolvido em sua significação teórica sobretudo por Nietzsche. Esse desenvolvimento está fundamentado na dúvida frente aos enunciados da autoconsciência, dos quais se deve duvidar melhor do que o fez Descartes, como diz expressamente Nietzsche. Em Nietzsche, o resultado dessa dúvida é uma modificação do sentido de verdade em geral. Com isso, o processo de interpretação transforma-se numa forma de vontade de poder, adquirindo assim uma significação ontológica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
Com a criação dos modernos códigos de lei, a tarefa clássica principal, a saber, a interpretação do direito romano, acabou perdendo-se seu interesse dogmático para adquirir um sentido prático, tornando-se elemento de uma problemática da história do direito. Como história do direito, pode encaixar-se sem reservas no pensamento metodológico das ciências históricas. A hermenêutica jurídica, ao contrário, como uma disciplina subsidiária da dogmática jurídica de um novo estilo, foi relegada à margem da jurisprudência. Mas a questão fundamental da “concretização no direito” permanece, e a relação da história do direito com a ciência normativa é por demais complicada para que a história do direito possa substituir a hermenêutica. O esclarecimento histórico sobre as circunstâncias históricas e as reais ponderações do legislador antes ou na promulgação de um texto legal podem ter ainda influência hermenêutica — a ratio legis, porém, não entra nessa problemática e continua sendo uma instância hermenêutica indispensável para toda jurisdição. Assim, o problema hermenêutico continua legitimado em toda ciência jurídica, como se dá com a teologia e sua constante tarefa de “aplicação”. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
Encontramos ali, porém, uma dimensão ainda mais abrangente do problema hermenêutico, estreitamente ligada à posição central que a linguagem ocupa no âmbito hermenêutico. A linguagem não é apenas um médium, entre outros, dentro do mundo das “formas simbólicas” (Cassirer), mas tem uma relação especial com o potencial caráter comunitário da razão. É a razão que se atualiza comunicativamente na linguagem, como já dizia R. Hõnigswald: A linguagem não é apenas “fato”, mas “princípio”. É nisso que repousa a universalidade da dimensão hermenêutica. Esta universalidade já se encontra na teoria do significado de Agostinho e Tomás de Aquino, à medida que eles consideravam que o significado dos signos (das palavras) era superado peló das coisas, justificando assim a tarefa de transcender o sensus litteralis. A hermenêutica, hoje, não pode simplesmente seguir essa teoria, isto é, não pode entronizar uma nova alegorese. Para isso precisaríamos pressupor uma linguagem da criação, pela qual Deus fala conosco. Não podemos, contudo, evitar a consideração de que não só no discurso e na escrita mas em todas as criações humanas encontra-se um “sentido”, e que a tarefa da hermenêutica é descobrir esse sentido. Hegel (112) expressou-o na sua teoria do “espírito objetivo”. Essa parte de sua filosofia do espírito permaneceu viva independentemente da totalidade do sistema dialético (cf., por exemplo, a teoria do espírito objetivo de Nicolai Hartmann e o idealismo de Croce e Gentile). Não só a linguagem da arte reivindica legitimamente um entendimento, mas toda forma de criação cultural humana em geral. Sim, a questão se amplia. Existirá algo que não faça parte de nossa orientação no mundo fundamentalmente como linguagem? Todo conhecimento humano do mundo é mediado pela linguagem. Quando se aprende a falar já se cumpre uma primeira orientação no mundo. Mas não só isso. A estrutura da linguagem de nosso estar-no-mundo acaba articulando todo o âmbito da experiência. A lógica da indução, descrita por Aristóteles e desenvolvida por F. Bacon como fundamento das novas ciências empíricas, parece insatisfatória enquanto teoria lógica da experiência científica e carente de correção. Nela transparece, porém, claramente sua proximidade com a articulação de mundo feita na linguagem. Já Temístio, em seu comentário a Aristóteles, ilustrou este capítulo correspondente de Aristóteles (An. Post B 19) com o exemplo do aprendizado da fala. A linguística moderna (Chomsky) e a psicologia (Piaget) deram novos passos nesse terreno. Isso vale, porém, para um sentido ainda mais amplo. Toda experiência realiza-se numa constante ampliação comunicativa de nosso conhecimento do mundo. Ela mesma é conhecimento do conhecido num sentido muito mais profundo e generalizado do que expressava a fórmula cunhada por A. Boeckh para designar o ofício do filólogo. É que a tradição na qual vivemos não é o que se chama de tradição cultural, que consistiria apenas de textos e monumentos, e que transmitiria um sentido estruturado na linguagem ou documentado historicamente, deixando “do lado de fora” os reais determinantes de nossa vida, as condições de produção etc. Bem longe disso, o próprio mundo experimentado pela comunicação se nos transmite constantemente como uma totalidade aberta, traditur. Isso não é nada mais que experiência. Ela se dá sempre que se experimenta mundo, sempre que se supera o estranhamento, onde se produz iluminação, intuição, apropriação. A tarefa primordial da hermenêutica como teoria filosófica consiste em mostrar, por fim, como bem indicou Polanyi, que só pode ser chamada de “experiência” a integração de todo conhecimento da ciência ao saber pessoal do indivíduo. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
O problema hermenêutico adquiriu uma nova ênfase na esfera da lógica das ciências sociais. Certamente, dever-se-á reconhecer que a dimensão hermenêutica encontra-se à base de toda experiência de mundo, desempenhando por isso uma função também no trabalho das ciências naturais, como ficou demonstrado sobretudo por Thomas Kuhn. E isso vale ainda com mais decisão para as ciências sociais, pois, à medida que a sociedade possui sempre uma existência compreendida no âmbito da linguagem, o próprio campo de objetos das ciências sociais (e não apenas sua formação teórica) é presidido pela dimensão hermenêutica. Em certo sentido, a crítica hermenêutica ao objetivismo ingênuo das ciências do espírito tem sua contrapartida na crítica da ideologia, inspirada em Marx (Habermas; cf. também a forte polêmica de Hans Albert contra essa corrente). Também a cura pelo diálogo representa um fenómeno hermenêutico eminente, cujas bases teóricas foram rediscutidas por J. Lacan e P. Ricoeur. O alcance da analogia entre doenças mentais e doenças sociais parece-me profundamente questionável. A situação do cientista social frente à sociedade não é a mesma que a do psicanalista frente a seu paciente. Uma crítica da ideologia que pensa estar isenta de toda preocupação ideológica não é menos dogmática que uma ciência social “positivista” que se compreende como técnica social. Frente a essas tentativas de mediação, parece-me compreensível a oposição defendida por Derrida entre a teoria da desconstrução e a hermenêutica. A experiência hermenêutica, no entanto, defende seu próprio direito contra uma tal teoria da desconstrução do “sentido”. Apesar de Nietzsche, buscar “sentido” na écriture nada tem a ver com metafísica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
Com isso caracteriza-se a situação específica em que se situa o problema hermenêutico. Certamente não surge esse problema quando se trata de mera recepção e desdobramento originário de uma determinada tradição espiritual, como foi o caso, por exemplo, da redescoberta humanista da Antiguidade Clássica. Ali, muito mais do que “compreender” os antigos, buscava-se imitar, seguir e até mesmo concorrer de maneira imediata com os antigos autores. O problema hermenêutico não se coloca quando essa poderosa tradição sufoca dentro de si o próprio comportamento. Ele se coloca somente quando surge a consciência de que a tradição com a qual alguém se depara é algo estranho, seja pelo fato de a ela não se pertencer, seja pelo fato de a tradição não mais ser assumida como algo inquestionável. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.
Aqui está em questão o aspecto do problema hermenêutico apresentado nesse último caso. Tanto a compreensão da tradição cristã quanto a da Antiguidade Clássica implica para nós uma consciência histórica. Por mais vivo que ainda seja o que nos liga à grande tradição greco-cristã, compartilhamos todos a consciência da alteridade, a consciência de não pertencermos mais de modo inquestionável a esta tradição. Isso torna-se muito claro nos primórdios da crítica histórica à tradição e nos inícios da crítica bíblica empreendida por Spinoza, em seu tratado teológico-político. Ali mostra-se claramente que o caminho da compreensão histórica é uma espécie de desvio inevitável, que deve ser percorrido por todo aquele que, não tendo acesso direto ao que diz a tradição, quer compreendê-la. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.
A universalidade do problema hermenêutico (1966) (219) VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.
O fato de a hermenêutica filosófica ter como tarefa abrir a dimensão hermenêutica em toda sua amplitude e alcance e de aplicar seu significado fundamental a todo o conjunto de nossa compreensão de mundo, em todas as suas formas, desde a comunicação entre os seres humanos até a manipulação social, desde a experiência do indivíduo na sociedade até a experiência que ele faz nessa sociedade, desde a tradição construída pela religião e o direito, a arte e a filosofia até a energia da reflexão emancipatória da consciência revolucionária, não é o bastante para excluir a limitação das experiências e dos campos de experiência que o pesquisador individual toma como ponto de partida. Meu próprio trabalho não passa de uma contribuição a mais, acrescentada à filosófica da herança do romantismo alemão, levada a efeito por Dilthey. Este adotou o tema da teoria das ciências do espírito, munindo-as de uma base nova e mais ampla: na contraposição entre a experiência da arte e a alienação histórica das ciências do espírito, aquela pretende sair-se vitoriosa em virtude da simultaneidade que lhe é própria. Com isso visava-se a uma verdade que, pelo questionamento, ultrapassa toda ciência e que por outro lado antecipa-a. Isso deveria mostrar-se na estrutura essencial da linguagem característica de toda experiência humana de mundo, cujo modo de realização é o da simultaneidade em constante renovação. Nesse sentido, era inevitável que os fenômenos iniciais, mesmo na análise da estrutura da linguagem universal do comportamento humano no mundo, se colocassem em primeiro plano. Isso correspondia ao surgimento histórico-científico do problema hermenêutico que ganhou alento na tradição escrita, na tradição que se havia tornado estranha pela fixação, pela duração e pela distância no tempo. Assim tornara-se óbvio apresentar o complexo problema da tradução como modelo de linguagem do comportamento humano no mundo e desenvolver nas estruturas da tradução a problemática comum do modo de apropriar-se do estranho. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.
Nesse sentido, o “ser para o texto” não esgota a dimensão (233) hermenêutica, a não ser que ampliemos o sentido de “texto”, compreendendo-o como o texto que “Deus escreveu de próprio punho”, como o liber naturae, abrangendo com isso também toda ciência, desde a física até a sociologia e antropologia. Mas, mesmo assim, o modelo da tradução é insuficiente para abarcar a multiplicidade do que significa linguagem no comportamento dos seres humanos. Na leitura do maior de todos os “livros” é possível demonstrar a tensão e a solução que estruturam o compreender e a compreensibilidade, talvez também a compreensão, e nesse sentido não se pode duvidar da universalidade do problema hermenêutico. Não se trata de um tema secundário. A hermenêutica não é uma mera disciplina auxiliar das ciências românticas do espírito. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.
A história da compreensão não é menos antiga e honorável. Se quisermos reconhecer a hermenêutica onde ela aparece como uma verdadeira arte de compreender, então, se não quisermos começar com o Nestor da Ilíada, temos de começar com Ulisses. Poderíamos apelar para o fato de que o novo movimento de educação da sofística impulsionou de fato a interpretação de frases poéticas famosas, adornando-as artificialmente como exemplos pedagógicos. Junto com Gundert, poderíamos até contrapor a esta hermenêutica uma hermenêutica socrática. Mas isso está longe de ser uma teoria da compreensão, e parece ser característico para o surgimento do problema hermenêutico a eliminação de um distanciamento, a superação de uma alteridade e a construção de uma ponte entre o outrora e o agora. Nesse sentido, seu momento característico foi a época moderna, que ganhou consciência de sua distância em relação aos tempos passados. Algo disso já se encontrava na pretensão teológica de compreensão da Bíblia, própria da Reforma, e de seu princípio da sola scriptura, mas encontrou um real desenvolvimento na medida em que o Iluminismo e Romantismo geraram uma consciência histórica, que estabeleceu uma relação cindida com toda tradição. Outra consequência se deu pelo fato de a história da teoria hermenêutica ter-se orientado na tarefa da interpretação das “manifestações vivas expressas por escrito”, mesmo que a elaboração teórica da hermenêutica de Schleiermacher tenha incluído a compreensão no modo como se dá no trato oral da conversação. A retórica, ao contrário, voltava-se para a imediaticidade do efeito do discurso, e mesmo tendo trilhado também os caminhos da escrita artística e desenvolvido a teoria do estilo e os estilos, sua verdadeira realização não se dá na leitura mas no dizer. A posição intermédia do discurso proclamado já denuncia a tendência de basear a arte do discurso em recursos artísticos fixados por escrito, desligando-os da situação originária. Aqui se inicia a influência recíproca com a poética, cujos objetos de linguagem alcançam um tal grau de pureza artística que sua transformação da oralidade para a escritura e vice-versa se dá sem perdas. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.
Não podemos negar que essa concepção da teoria sociológica tem certa coerência. Contudo, parece duvidoso que a contribuição (242) da hermenêutica seja aproveitada corretamente se for estabelecida a partir do conceito-limite de uma coincidência de todas as motivações da ação com um sentido compreendido. O problema hermenêutico possui um alcance tão universal e fundamental para toda experiência inter-humana da história e da atualidade, porque se pode experimentar um sentido também onde este não se dá intencionalmente. Diminui-se a universalidade da dimensão hermenêutica quando um âmbito do sentido compreensível (“transmissão cultural”) é destacado frente a outros determinantes da realidade sociológica, perceptíveis simplesmente como fatores reais. Como se toda ideologia, enquanto uma falsa consciência baseada na linguagem, não só se apresentasse como um sentido compreensível, mas pudesse ser compreendida também em seu sentido “verdadeiro”, por exemplo naquele do interesse de dominar. O mesmo vale também para os motivos inconscientes que o psicanalista faz vir à consciência. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.
O ponto de partida do desenvolvimento da dimensão hermenêutica tomado por Verdade e método I na experiência da arte e nas ciências do espírito parece dificultar aqui a avaliação de seu verdadeiro alcance. De certo, também o chamado aspecto universal, desenvolvido na III parte do livro, é por demais esquemático e unilateral. Mas do ponto de vista da colocação do problema hermenêutico, parece-me objetivamente absurdo que os reais fatores de trabalho e domínio devam permanecer fora de suas fronteiras. O que seriam então os preconceitos de que deve se ocupar a reflexão do esforço hermenêutico? De onde procedem? Da transmissão cultural? Também dela, certamente. Mas donde forma-se essa? O idealismo da linguagem seria na verdade um absurdo grotesco se não se limitasse a uma função meramente metodológica. Habermas afirmou certa vez: “A hermenêutica choca-se a partir de dentro com os muros dos nexos da tradição” (177). Essa afirmação não deixa de conter alguma verdade, se essa ideia se refere ao contraste que estabelece com um “a partir de fora”, que não entra em nosso mundo compreensível ou incompreensível, e que deve ser compreendido, mas que fica preso na observação que constata modificações (em vez de ações). Creio que seja um erro, no entanto, querer absolutizar a tradição cultural. Há que se buscar compreender tudo que pode ser compreendido. Nesse sentido, vale o princípio de que “o ser que pode ser compreendido é a linguagem”. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.
Também temos de nos proteger contra a vontade de compreender esse tipo de movimento hermenêutico da pesquisa baseados no modelo do progresso imediato. Apel enriqueceu muito a discussão sobre o estado do problema hermenêutico pela sua aproximação com Peirce e Royce, elaborando a relação prática em toda compreensão de sentido. Ele tem razão em reivindicar para isso a ideia de uma comunidade de interpretação ilimitada. Sem dúvida, só essa é capaz de legitimar a pretensão de verdade nos esforços de entendimento. E no entanto tenho lá minhas dúvidas se é correto conjugar a legitimação da mesma com a ideia de progresso. A variedade das possibilidades de interpretação que se experimentam não exclui que essas se neutralizem mutuamente. Também o fato de que no curso dessa práxis interpretativa surjam antíteses dialéticas não representa nenhuma garantia para a aproximação a sínteses mais verdadeiras. Nesses âmbitos das ciências históricas devemos ver o “resultado” do processo interpretativo não tanto no progresso, que sempre se dá em aspectos parciais, mas antes num desempenho contrário ao declínio e à decadência do saber: a revitalização da linguagem e a recuperação do sentido atribuído a alguém através da tradição. Isso representa um relativismo perigoso apenas a partir do parâmetro de um saber absoluto, que não é o nosso. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.
A virada da teoria hermenêutica iniciada com a crítica de Heidegger ao idealismo da consciência tem, por outro lado, uma história muito antiga. Encontramos aqui a conexão do problema hermenêutico com a tradição da filosofia prática desde Aristóteles, defendida por J. Ritter e por eu mesmo. Essa tradição não é tão fácil de se liquidar, e não consigo compreender por que Jaeger se enoja da “interpretação” e a “compreensão”. São, sobretudo, os procedimentos analíticos os que nada têm a ver com qualquer tipo de aventura irracionalista. Ajustam-se muito mais à tradição clássica da retórica e, segundo o artigo de Jaeger, que tem para mim o mérito de me haver incitado ao estudo de Dannhauer, sei que também a lógica aristotélica e analítica, no sentido de methodus resolutiva, constituiu uma outra, possível orientação para a formação da teoria hermenêutica. O certo é que o douto trabalho de Jaeger só me serviu para esse “também”. Não sei por que o aristotelismo lógico de Dannhauer não deva ocupar um lugar de destaque dentro da res publica litteraria, frente a Flacius e à hermenêutica teológica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.
Há uma pergunta que me inquieta desde vários decênios: O que pode significar hoje a opção a favor dos anciens? Essa opção está comprometida em todo caso com a hipoteca de que seu defensor não vê e pensa simplesmente com os olhos dos anciens, mas que como historiador atual vê essa visão e pensa esse pensamento. Assim o próprio Jaeger vê-se imerso numa problemática hermenêutica que o diferencia dos anciens pelo menos pelo fato de repudiar com feroz sarcasmo a hermenêutica contemporânea. Não se pode negar seriamente que uma investigação, como a que ele apresenta, (300) lança mão dos pressupostos da era pós-romântica, quer dizer, da consciência histórica. Isso significa que ele, como qualquer outro, pertence aos “modernos”. Isso não significa de modo nenhum que com esse reconhecimento se projetem no passado as teorias específicas da “hermenêutica recente”. Tampouco cabe negar aqui que a distância histórica que separa o cristianismo do tempo de Agostinho da cultura nômade da era dos patriarcas tenha constituído um verdadeiro problema hermenêutico para o próprio Agostinho. A assimilação religiosa dos escritos veterotestamentários pelo cristianismo não esteve livre de problemas. Nesse sentido, o De doctrina Christiana possui uma dimensão hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.
No âmbito da teologia temos uma situação análoga. De certo, houve desde a Antiguidade tardia uma espécie de arte interpretativa e até uma doutrina correta dos diversos modos de interpretação da Sagrada Escritura. Mas as diversas formas de interpretação bíblica desde Cassiodoro serviam mais de instrução para tornar a Sagrada Escritura útil à tradição magisterial da Igreja do que para indicar uma via de interpretação da mesma para alcançar a reta doutrina. Com o retorno reformista à Escritura e sobretudo com a difusão da leitura da Bíblia, inclusive à margem da tradição corporativista dos clérigos, em virtude da doutrina protestante do sacerdócio comum, o problema hermenêutico ganhou uma urgência bem diversa. Não é tão decisivo o fato de as “Escrituras” estarem às voltas com textos de língua estrangeira, cuja tradução correta para as línguas vernáculas e a compreensão exata mobilizam todo o aparato do conhecimento da linguagem, literário e histórico. Com o radicalismo da volta reformista ao Novo Testamento e com o abandono da tradição magisterial da Igreja, a própria mensagem cristã veio de encontro ao leitor com uma nova e heterogênea radicalidade. Isso excedia amplamente os recursos (312) filológicos e históricos necessários também para qualquer texto antigo, escrito em língua estrangeira. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.
E todo o culto cristão, desde que se tornou prioritário pela Reforma, de modo ainda mais decisivo que na tradição cristã anterior, se resume na profissão de fé, no fortalecimento e no chamado à fé. A fé baseia-se tão-somente na reta interpretação da mensagem cristã. Por isso, a tarefa específica da hermenêutica teológica irá tornar-se evidente pelo fato de a interpretação da Sagrada Escritura, em virtude da pregação, aparecer agora como o centro do culto divino, nas igrejas cristãs. Não serve tanto para uma interpretação científica da Sagrada Escritura quanto para a práxis da pregação, pela qual a mensagem salvífica deve atingir o indivíduo de modo que esse se sinta interpelado e nela implicado. Por isso, a aplicação não é uma mera “aplicação” da compreensão, mas seu verdadeiro núcleo. Desse modo, a problemática da aplicação, que alcançou seu ponto alto no pietismo, não representa apenas um momento essencial na hermenêutica dos textos religiosos, mas mostra a significação filosófica do problema hermenêutico em seu conjunto. A aplicação é algo mais que um mero recurso metodológico. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.
O certo é que se nos limitamos a essa crítica “hermenêutica” (322) dos fatos, desde a perspectiva de sua teorização, só poderemos justificar as ciências do espírito numa escala muito pequena. Então, acaba sobrando apenas o grandioso e quixotesco empreendimento de Max Weber de estender a “ciência sem juízos de valor” também ao saber sociológico. O verdadeiro problema hermenêutico no âmbito do saber sobre o homem e do saber do homem sobre si mesmo não se coloca no mero isolamento da relação recíproca entre teoria e fato. Quando no final do século XIX a escola do sudoeste alemão alcançou seu predomínio (e Max Weber aderiu a ela em certa medida), sua posição-chave era a autofundamentação das ciências do espírito na definição do que é um fato histórico. É óbvio que um fato histórico não é um mero fato e que nem tudo que acontece pode ser chamado de fato histórico. O que é que faz com que um fato seja um fato histórico? A resposta usual costuma dizer que é a referência axiológica. Que o fato de Napoleão ter apanhado um resfriado na batalha de Wagram (ou seja lá onde tenha sido) tenha influenciado o curso das coisas. Nem todos os resfriados que as pessoas apanham são fatos históricos. A teoria dos valores era, pois, a teoria prevalecente. Mas não há uma ciência dos valores. Max Weber chegou, assim, à conclusão radical de que é preciso descartar da ciência as questões de valor e que a sociologia deveria buscar uma nova base. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.
Para isso é preciso uma visão certeira. A admirável empresa de uma crítica da razão histórica, empreendida por Dilthey, foi marcada e também obstaculizada, pensamos hoje, por sua dependência em relação ao modelo metodológico das ciências experimentais da (328) natureza. De certo, seu repúdio à teoria axiológica do neokantismo (Rickert) tem sua razão de ser; mas era preciso superar a mera oposição à teoria neokantiana dos valores. Foi o que fez Theodor Litt. Quando no ano de 1941, eu escutei, em Leipzig, a conferência de Litt na Academia saxónica de ciências, da qual acabara de ser eleito membro — seu membro mais jovem — esse estudo sobre “o universal na elaboração do conhecimento das ciências do espírito” pareceu-me uma síntese na qual Litt ratificava sua posição intermediária entre Kant e Herder. Ele a havia elaborado no ano de 1930 num belo livro. Como a linguagem constituía nesse caso a ponte entre o universal e o particular ou singular, pareceu-me muito natural aproveitar meu próprio estudo da crítica ontológica que Heidegger fez à metafísica grega e a sua consequência histórica, aplicando-o ao pensamento subjetivo da modernidade para precisar melhor a natureza das ciências do espírito. Ainda hoje sinto-me próximo de Litt, por exemplo, na defesa da linguagem da cotidianidade frente à linguagem técnica e o conceito “puro”, o qual tem sua plena justificação nas ciências da natureza. Litt aprendeu a articular seu próprio pensamento na dialética hegeliana do universal e do particular e na fusão do juízo determinante com o juízo reflexivo. Desse modo tocava no nervo hermenêutico. Eu mesmo procurei ultrapassar o horizonte da teoria moderna da ciência e da filosofia das ciências do espírito para examinar o problema hermenêutico, tomando como referência a estrutura fundamental do ser humano baseada na linguagem. A virtude aristotélica da racionalidade, a phronesis, acaba sendo a virtude hermenêutica fundamental. Serviu de modelo para a formação de minha própria linha argumentativa. Desse modo, a hermenêutica, essa teoria da aplicação, quer dizer, da conjugação do universal e do particular, converteu-se para mim numa tarefa filosófica central. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.
Chegamos assim a um conceito sumário do que está à base de (345) toda constituição de textos e permite sua inserção no contexto hermenêutico: toda volta ao texto — seja um texto real, fixado por escrito, ou uma mera reprodução do que se expressa na conversação — remete à “notícia originária”, ao notificado ou anunciado originariamente que há de valer como algo idêntico dotado de sentido. A tarefa prescrita a tudo que se vai fixar por escrito é justamente que esta “notícia” deve poder ser compreendida. E o texto escrito deve fixar a informação originária de tal modo que seu sentido seja compreensível univocamente. À tarefa do escritor corresponde aqui a tarefa do leitor, do destinatário ou do intérprete, que é a tarefa de alcançar essa compreensão, ou seja, fazer com que o texto fixado por escrito fale novamente. Nesse sentido, ler e compreender significa restituir à informação sua autenticidade original. A tarefa da interpretação se apresenta quando o conteúdo do que é fixado por escrito é controverso e é preciso alcançar a reta compreensão da “informação”. Mas a “informação” não é o que o orador ou o escritor disse originariamente, mas o que queria dizer se eu tivesse sido seu interlocutor originário. O problema hermenêutico na interpretação das “ordens”, por exemplo, é que estas devem cumprir-se “conforme seu sentido” (e não ao pé da letra). O que se explica pela constatação de que um texto não é um objeto dado, mas uma fase na realização de um processo de entendimento. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
A pretensão de validez inerente à instituição do direito faz com que esse adquira o estatuto de texto, codificado ou não. A lei, enquanto estatuto ou constituição, necessita sempre da interpretação para a sua aplicação prática, o que significa, por outro lado, que toda aplicação prática implica interpretação. Por isso a jurisprudência, os casos precedentes e a praxis anterior comportam sempre uma função legislativa. Nesse sentido, o âmbito jurídico mostra exemplarmente até que ponto a redação deve sempre ser feita tendo-se em mente sua interpretação, ou seja, uma aplicação correta e razoável. É preciso assinalar que o problema hermenêutico no procedimento oral e no escrito é no fundo o mesmo. Pensemos, por exemplo, no interrogatório de testemunhas. Essas não podem ser pessoas versadas nas condições da investigação e no trabalho de busca da justa sentença. Assim, a pergunta a elas dirigida apresenta o caráter abstrato de “texto”, e a resposta que darão é do mesmo gênero. O que significa que essa resposta tem o caráter de uma declaração escrita. Prova disso é a insatisfação com que as próprias testemunhas acolhem a protocolação de uma declaração. Não podem negar o que dizem, mas não lhe agrada deixá-lo nesse isolamento, querendo interpretá-lo de imediato eles mesmos. A tarefa de fixação e, portanto, a redação do protocolo deve levar isso em conta, uma vez que, na reprodução do que realmente foi dito, o protocolo, na medida do possível, deve ajustar-se à intenção do declarante. O exemplo da declaração das testemunhas mostra, ao contrário, como o procedimento escrito (ou os componentes da escritura no processo) influi no desenvolvimento do diálogo. A testemunha isolada em sua declaração encontra-se de antemão confinada à expressão escrita dos resultados da investigação. Uma situação parecida ocorre quando pedimos para que a promessa, a ordem dada ou a formulação da pergunta sejam feitas por escrito: também isso supõe uma separação da situação comunicativa original e deve expressar o sentido originário em forma de fixação escrita. Em todos esses casos é evidente a referência à situação comunicativa original. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
Rómerbrief (Epístola aos Romanos) de Karl Barth, marcada pela recusa total a uma reflexão metodológica, representa uma espécie de manifesto hermenêutico. O fato de Barth não concordar com a tese da desmitologização do Novo Testamento, de Rudolf Bultmann, não se deve tanto ao interesse temático, segundo me parece, mas à vinculação da investigação histórico-crítica com a exegese teológica e ao fato de buscar o apoio da filosofia (Heidegger) para a auto-reflexão metodológica. É isso que impede Barth de identificar-se com os procedimentos de Bultmann. Nesse sentido, tornou-se uma necessidade objetiva não tanto recusar pura e simplesmente a herança da teologia liberal, mas antes dominá-la. A discussão atual do problema hermenêutico no âmbito da teologia — e não apenas a do problema hermenêutico — vem marcada pela discussão e confronto da intenção puramente teológica com a historiografia crítica. Alguns acham que, diante dessa situação, é necessário defender novamente esse questionamento histórico; outros, como mostram os trabalhos de Ott, Ebeling e Fuchs, colocam em (392) primeiro plano não tanto o caráter investigativo da teologia, mas seu auxílio hermenêutico para o anúncio. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
Aquele que, como leigo, quiser tomar posição frente ao desenvolvimento do problema hermenêutico no âmbito da discussão jurídica não poderá aprofundar-se unicamente no trabalho jurídico. Na visão de conjunto, ele irá observar que a jurisprudência se afasta amplamente do chamado positivismo legal. Irá considerar também que uma das questões centrais será saber até que ponto a concretização do direito representa um problema jurídico independente. Kurt Engisch (1953) desenvolveu uma panorâmica desse problema. O fato de esse problema ser colocado em primeiro plano, contrapondo-se ao extremismo do direito positivista, é compreensível também do ponto de vista histórico, por exemplo, na Privatrechtsgeschichte der Neuzeit de Franz Wieacker ou no Methodenlehre der Rechtswissenschaft de Karl Larenz. Nos três âmbitos em que a hermenêutica de há muito desempenha algum papel, na ciência histórico-filológica, na teologia e na jurisprudência, pode-se constatar que a crítica ao objetivismo histórico e consequentemente ao “positivismo” deu uma nova significação ao aspecto hermenêutico. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
Um ponto positivo dessa situação é o fato de o problema hermenêutico ter sido sistematicamente dimensionado e ordenado em toda sua amplitude pelo importante trabalho de um pesquisador italiano. O historiador de direito Emilio Betti, na sua grande obra Teoria genérale delia interpretazione — cujas ideias foram transpostas também para a língua alemã em um hermeneutisches Manifest (manifesto hermenêutico), sob o título Zur Grundlegung einer allgemeinen Auslegungslehre — , apresentou uma panorâmica do estado da questão, que seduz tanto pela amplitude de seu horizonte, pelo imponente conhecimento de detalhes, quanto por seu desenvolvimento sistemático. Encontra-se muito bem suprido e invulnerável contra os perigos de um objetivismo histórico ingênuo, sendo ao mesmo tempo historiador de direito, professor de direito e concidadão de Croce e Gentile e até muito familiarizado com a grande filosofia alemã, de tal modo que fala e escreve um alemão perfeito. Ele sabe colher e recolher os frutos da reflexão hermenêutica (393) que vêm amadurecendo num esforço incessante desde Wilhelm von Humboldt e Schleiermacher. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
Mas o que diz Betti a respeito disso? Afirma que estou restringindo o problema hermenêutico à quaestio facti (“fenomenologicamente”, “descritivamente”), e que não coloco a quaestio iuris. Como se a tematização kantiana da quaestio iuris quisesse prescrever como deveria ser realmente a ciência pura da natureza, e não procurasse, antes, justificar a possibilidade transcendental da mesma, como ela era. No sentido dessa diferenciação kantiana, o pensamento que ultrapassa o conceito de método das ciências do espírito, como procuro apresentar em meu livro, coloca a questão pela “possibilidade” das ciências do espírito (o que não significa dizer como elas propriamente deveriam ser!). Nesse caso, o que confunde o louvável investigador é um estranho ressentimento contra a fenomenologia. Mostra-se no fato de ele só conseguir pensar o problema da hermenêutica como um problema de método, e isto profundamente emaranhado no subjetivismo que se trata de superar. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
Um positivismo legal que quisesse reduzir toda a realidade jurídica ao direito positivo e a sua aplicação correta dificilmente encontraria hoje alguém que o adotasse. A distância existente entre a generalidade da lei e a situação jurídica concreta, no caso particular, é insuperável por essência. Também não parece ser suficiente pensar à maneira de uma dogmática ideal, segundo a qual a força produtora de direito inerente ao caso particular seria predeterminada logicamente, no sentido de que fosse possível imaginar uma dogmática que pudesse conter, pelo menos potencialmente, todas as verdades jurídicas geralmente possíveis dentro de um sistema coerente. Mesmo a “ideia” de uma tal dogmática completa parece ser absurda, mesmo sem levarmos em conta que, de fato, a força criadora de direito do caso particular está constantemente preparando a base para novas codificações. É interessante observar nessa questão que a tarefa hermenêutica de criar uma ponte, superando a distância entre a lei e o caso particular, dá-se mesmo quando nenhuma mudança das relações sociais ou outras modificações históricas da realidade permitem que o direito vigente se mostre ultrapassado e inadequado. A distância entre lei e caso particular parece simplesmente insuperável. Nessa perspectiva, o problema hermenêutico pode ser absolvido de levar em consideração a dimensão histórica. Aquilo que deixa espaço de jogo para a concreção tampouco é uma simples e inevitável imperfeição no processo de execução da codificação jurídica, de tal modo que se poderia rebaixar idealmente esse espaço de jogo para todo e qualquer critério de medida. Parece, ao contrário, que esse modo de ser “elástico” que abre o espaço de jogo baseia-se no sentido da própria regulamentação legal e no sentido de toda ordenação jurídica em geral. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
Creio que a discussão atual sobre o problema hermenêutico em parte alguma é tão acirrada quanto no âmbito da teologia protestante. Em certo sentido, também aqui, como ocorre na hermenêutica jurídica, estão em questão interesses que ultrapassam a ciência. O que significa dizer, interesses de fé e de sua correta proclamação. Como consequência temos que a discussão hermenêutica se vê envolta em questões exegéticas e dogmáticas, frente às quais o leigo não pode tomar posição. Mas como ocorre na hermenêutica jurídica, também aqui mostra-se claramente a primazia dessa situação: O “sentido” dos textos a serem compreendidos não pode ser restrito à opinião imaginativa de seu autor. Em toda a grandiosa e monumental obra de Karl Barth, sua Kirchliche Dogmatik (Dogmática eclesial), encontramos contribuições implícitas ao problema hermenêutico, mesmo que nunca apareçam de forma expressa. Com Rudolf Bultmann, as coisas se dão de maneira um pouco diferente, visto que demonstra grande interesse pelas considerações metodológicas e em suas obras completas tomou posição expressa, por diversas vezes, frente ao problema da hermenêutica. Mas, mesmo no caso de Bultmann, o centro de gravidade de todo questionamento conserva um cunho eminentemente teológico, não somente no sentido de que seu trabalho exegético representa o solo experimental e o âmbito de aplicação de seus princípios hermenêuticos, mas também e sobretudo no sentido de que a grande discussão teológica atual, a questão da desmitologização do Novo Testamento, contém muito mais tensões dogmáticas do que o que seria conveniente a reflexões metodológicas. Estou convencido de que o princípio da desmitologização contém um aspecto puramente hermenêutico. Segundo Bultmann, esse esquema não serve para se decidir previamente sobre questões dogmáticas, por exemplo, sobre quantos conteúdos dos escritos bíblicos são essenciais para o anúncio cristão e com isso para a fé, e o que, por exemplo, poderia ser eliminado. Trata-se, porém, do problema da compreensão do próprio anúncio cristão, do sentido em que este deve ser compreendido, se é que deve ser “compreendido”. Talvez, e até certamente, seja possível compreender no Novo Testamento “mais” do que o compreendeu Bultmann. O que só poderá (404) acontecer se compreendermos esse “rnais” corretamente, i. é, realmente. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
O artigo intitulado Übersetzung und Verkundigung (Tradução e anúncio) esclarece melhor em que sentido essa doutrina hermenêutica busca ultrapassar a interpretação existencial proposta por Bultmann. Sua orientação básica é o princípio hermenêutico da tradução. Esse princípio é indiscutível: “A tradução deve criar o mesmo espaço que queria criar um texto quando o espírito se pronunciou nele” (409). Mas, frente ao texto — e esta é uma consequência audaz e inevitável — , a palavra tem a primazia, pois é acontecimento da linguagem. Isso deve deixar claro que a relação entre palavra e pensamento não é no sentido de que a palavra expressa só alcança o pensamento a posteriori. A palavra é como um raio certeiro. A seguinte afirmação de Ebeling vem de encontro a isso: “Na realização da pregação, o problema hermenêutico experimenta sua densidade mais extrema”. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
E o que aparece em outra passagem, quando ele defende o ideal de uma “interpretação objetiva” de um texto, com a ideia de que o autor compreendeu sua doutrina somente de um único modo, “supondo-se que ele não estava confuso” (67). Deveríamos perguntar ainda se essa oposição entre claro e confuso é assim tão evidente como supõe Strauss. Objetivamente falando, essa ideia não faz com que ele comungue com o posicionamento do Iluminismo histórico perfeito e acabado, passando ao largo do verdadeiro problema hermenêutico? Ele parece julgar possível compreender o que não se compreende pessoalmente, mas o que um outro compreende, e somente compreender tal como este compreendeu a si mesmo. E parece pensar ainda que quem diz alguma coisa, com isso compreendeu “a si mesmo” necessária e adequadamente. Creio que ambas as coisas não podem ser certas. Para podermos extrair um sentido válido desse princípio hermenêutico que reza que se deve compreender um autor “melhor” do que ele próprio se compreendeu, devemos livrá-lo da pressuposição de um Iluminismo perfeito e acabado. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
O que mais me admira na defesa que Strauss faz da filosofia clássica é seu esforço por compreendê-la como uma unidade, de modo que a oposição extrema entre Platão e Aristóteles tanto em relação à forma quanto ao sentido da questão pelo bem parece não lhe causar preocupações. Os primeiros estímulos que recebi de Heidegger tornaram-se fecundos entre outras coisas porque involuntariamente me ajudaram a penetrar mais fundo no problema hermenêutico da Ética a Nicômaco. Não creio, de modo algum, que este seja um uso indevido do pensamento aristotélico. Isso nos ensina, antes, como podemos extrair dali um possível ensinamento, uma crítica do universal-abstrato, nos moldes como essa crítica se tornou determinante para a situação hermenêutica com o surgimento da (423) consciência histórica, sem precisar do extremismo dialético hegeliano e por conseguinte sem a consequência insustentável representada no conceito do saber absoluto. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
Nesse sentido, a dimensão da teoria da ciência foi radicalmente ultrapassada. Nessa teoria, desde Dilthey até Betti o pensamento idealista foi utilizado em função da hermenêutica. Schleiermacher já havia destacado a conexão interna existente entre falar, compreender e interpretar, dissolvendo a vinculação tradicional do tema hermenêutico a “manifestações vitais fixadas por escrito” (Dilthey). Com isso, restituiu o caráter hermenêutico ao diálogo vivo. Mas também no estreitamento epistemológico que hermenêutica voltou a sofrer no século XIX não se puderam esconder as dificuldades que se opunham a uma teoria geral da interpretação inspirada no idealismo. O fato de a hermenêutica jurídica, que reivindica uma função legislativa, dever conectar-se à área da metodologia hermenêutica das ciências do espírito tornava-se tão obscuro como o sentido reprodutivo da interpretação que desempenha papel tão importante no teatro e na música. Ambos indicam para além da problemática inerente à teoria da ciência. Isso vale também para a teologia. Pois, mesmo que a hermenêutica teológica não lance mão de nenhuma outra fonte de inspiração ou de revelação para o ato de compreensão da Sagrada Escritura, o acontecimento querigmático da interpretação da Bíblia, como se dá na pregação ou no cuidado pastoral individual, enquanto fenômeno hermenêutico, não pode ser simplesmente desqualificado nem reduzido à problemática científica da teologia. Desse modo, foi preciso interrogar qual a necessidade de se abordar a unidade do problema hermenêutico num âmbito que ultrapassa a teoria da ciência e apreender o fenômeno da compreensão e da interpretação em um sentido mais originário. Mas então deveríamos ultrapassar também a ampliação universal da hermenêutica feita por Schleiermacher e sua fundamentação na unidade do pensamento e da fala. Isso porque deveríamos englobar também a hermenêutica jurídica, que antes estava estreitamente ligada à hermenêutica teológica, porque ambas incluíam “interpretação” e aplicação, isto é, o emprego de algo normativo ao caso particular. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.
O aspecto hermenêutico não pode limitar-se, pois, às ciências hermenêuticas da arte e da história, nem ao trabalho com os “textos”, nem sequer, como uma ampliação, à própria arte. A universalidade do problema hermenêutico, reconhecida já por Schleiermacher, abarca todo o âmbito do racional, tudo aquilo que pode ser objeto de acordo mútuo. Quando o entendimento parece impossível por se falarem “linguagens diferentes”, a tarefa da hermenêutica ainda não terminou. E ali que ela alcança seu sentido pleno como a tarefa de encontrar a linguagem comum. Mas a linguagem comum nunca é algo já definitivamente dado. É uma linguagem que faz o jogo entre os falantes, que deve permitir o início de um entendimento, ainda que as “opiniões” distintas se oponham frontalmente. Nunca se pode negar a possibilidade de entendimento entre seres racionais. Nem sequer o aparente relativismo presente na diversidade das linguagens humanas constitui uma barreira para a razão, cuja palavra é comum a todos, como já sabia Heráclito. A aprendizagem de línguas estrangeiras e mesmo a aprendizagem da fala pela criança não significam a simples assimilação dos recursos de entendimento. Essa aprendizagem representa antes uma espécie de pré-esquematização da experiência possível e sua primeira aquisição. O conhecimento de uma língua é um caminho para o conhecimento do mundo. Não apenas essa “aprendizagem”, mas toda e qualquer experiência se realiza em um constante progresso comunicativo de nosso conhecimento do mundo. Num sentido muito mais profundo e geral que o expresso na fórmula (498) cunhada por August Boeck para a função do filólogo, a experiência representa sempre “conhecimento do conhecido”. Vivemos dentro de tradições, e essas não são uma esfera parcial de nossa experiência do mundo nem uma tradição cultural que consta apenas de textos e monumentos e que transmite um sentido expresso pela linguagem e documentado historicamente. É o próprio mundo que percebemos em comum e se nos oferece (traditur) constantemente como uma tarefa aberta ao infinito. Não é nunca o mundo do primeiro dia, mas algo que herdamos. Sempre que vivemos algo, sempre que superamos o estranho, sempre que se produzem iluminações, conhecimento, assimilação, se realiza o processo hermêutico de inserção na palavra e na consciência comum. Mesmo a linguagem monologai da ciência moderna adquire realidade social por essa via. Creio que nesse ponto a universalidade da hermenêutica, tão contestada por Habermas, entre outros, se mostra bem fundamentada. A meu ver, Habermas jamais superou um conceito idealista do problema hermenêutico e acaba reduzindo meu posicionamento, equivocadamente, à “tradição cultural” no sentido de Theodor Litt O amplo debate dessa questão aparece documentado no volume da Editora Suhrkamp Hermeneutik und Ideologiekritik. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.
Aqui encontra-se um problema hermenêutico verdadeiramente árduo. A poesia comporta um tipo especial de comunicação. Com quem se dá essa comunicação? Com o leitor? Com qual leitor? A dialética de pergunta, que sustenta o processo hermenêutico e que surge do esquema básico do diálogo, sofre aqui uma modificação específica. A recepção e interpretação da poesia parece implicar uma relação dialogai sui generis. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.