Essa crítica à doutrina da percepção pura, que se fez a partir da experiência pragmática, foi tornada, por Heidegger, em algo fundamental. Com isso, ela passa a ter validade também para a consciência estética, embora aqui o ver simplesmente não “faça vista grossa” sobre o que é visto, p. ex., com relação à sua utilidade geral para algo, mas demorar-se no aspecto. O olhar (Schauen) demorado e o perceber não são simplesmente um ver o puro aspecto, mas continuam sendo, eles próprios, um aprender como… O gênero de ser do que foi concebido (Vernommen) esteticamente não é ocorrência (Vorhandenheit). Onde se trata de uma representação significante, p. ex., em obras da arte plástica, desde que não sejam abstratas-desprovidas-de-objeto, a significância para o ler do aspecto é claramente norteadora. Só quando “reconhecemos” o que está representado, podemos “ler” uma pintura, só então é que ela é, no fundo, uma pintura. Ver significa subdividir desmembrando. Enquanto ficamos testando formas variáveis de agrupamento ou ficamos oscilando entre elas, como no caso de certos quadros enigmáticos, ainda não conseguimos ver o que é. Um quadro enigmático é, ao mesmo tempo, a eternização artística de tal oscilar, o “tormento” do ver. Algo semelhante a isso ocorre com a obra de arte lingüística. Só quando entendemos um texto — portanto, quando, pelo menos, dominamos a linguagem de que se trata — , é que poderá ser uma obra de arte lingüística para nós. Mesmo quando, por exemplo, escutamos a música absoluta, é necessário que a “entendamos”. E somente quando a entendemos, quando ela se torna “clara” para nós, é que vem a ser para nós uma configuração artística. Assim, embora a música absoluta seja, como tal, uma pura mobilidade da forma, uma espécie de matemática toante, onde não há conteúdo objetivamente significativo que possamos perceber, não obstante o entender mantém uma relação para com o que é significativo. A indeterminação dessa relação é que representa a relação específica de significado de uma tal música. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Aplicando ao problema hermenêutico a forma de comportamento com relação ao tu e de compreensão do tu, que representa o conhecimento de pessoas, achamos como correlato dele a fé ingênua no método e na objetividade que este proporciona. Aquele que compreende a tradição dessa maneira a converte em objeto, e isso significa que se confronta com ela livremente, sem ver-se afetado, e que adquire certeza com respeito ao seu conteúdo, desconectando metodicamente todos os momentos subjetivos de sua relação para com ela. Já vimos como, desse modo, ele se liberta da sobrevivência da tradição, na qual ele próprio tem sua realidade histórica. Este é o método das ciências sociais correspondente à metodológica do século XVII e sua formulação pragmática por Hume, na realidade um clichê extraído da metodologia natural-científica. Do [35] procedimento efetivo das ciências do espírito toma-se um aspecto parcial, e este reduzido esquematicamente, na medida em que só se reconhece no comportamento humano o que é típico e regular. A essência da experiência hermenêutica fica assim nivelada da mesma maneira que tivemos ocasião de perceber na interpretação teleológica do conceito da indução, desde Aristóteles. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Quando uso o conceito de “situação” nesse contexto é para indicar que a pergunta e o enunciado da ciência não passam de um caso especial de uma relação muito mais genérica, tematizada no conceito da situação. A pertença mútua de “situação” e “verdade” já foi estabelecida no pragmatismo americano. Para esse, o que realmente caracteriza a verdade é o “saber virar-se” numa situação. A fecundidade de um conhecimento comprova-se na capacidade de resolver uma situação problemática. Não creio que a guinada pragmática dessa questão seja suficiente, aqui. Isso porque, considerando como a única coisa que importa o “saber virar-se” na situação, o pragmatismo simplesmente deixa de lado todas as assim chamadas perguntas filosóficas e metafísicas, porque a única coisa que importa é “saber virar-se” na situação. Para se avançar então seria necessário recusar todo lastro dogmático da tradição. Isso parece-me ser uma evasiva. O primado da pergunta por mim indicado não é um primado pragmático. E tampouco a resposta verdadeira está ligada ao critério das conseqüências da ação. E, no entanto, o pragmatismo tem razão em afirmar que é preciso ultrapassar a relação formal, colocando a pergunta como o sentido do enunciado. Encontramos o fenômeno inter-humano da pergunta em sua concreção plena, quando deixamos de lado a relação teórica entre pergunta e resposta, que perfaz a ciência, e refletimos sobre as situações nominais em que as pessoas são chamadas e interrogadas e interrogam a si próprias. Ali fica claro que a essência do enunciado experimenta em si uma ampliação. Não apenas que o enunciado sempre seja uma resposta, e sempre remeta a uma pergunta, mas que, em seu caráter enunciativo comum, tanto a pergunta quanto a resposta têm uma função hermenêutica. Ambas são interpelação. Isto não diz simplesmente que algo de nosso universo comum sempre se insere no conteúdo de nossos enunciados. O que não deixa de ser verdade. Todavia, a questão aqui não é essa. A questão é de que só há verdade no enunciado, à medida que este é interpelação. [54] O horizonte da situação, que perfaz a verdade de um enunciado, inclui nele aquele a quem se diz algo com o enunciado. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 4.
Essas reflexões permitem perfilar com precisão a questionada descrição inicial da tarefa da filosofia prática e política. O que Burnet considerou uma adaptação de Aristóteles ao uso de linguagem que faz Platão do termo technesl tem seu verdadeiro fundamento na interferência que existe entre o saber “poiético” da techne e a “filosofia prática” que estuda “o bem” dentro de uma generalidade típica. Essa filosofia prática como tal não é a phronesis. Praxis, prohairesis, techne e methodos aparecem também aqui numa seqüência e formam de certo modo um contínuo de transições. Mesmo assim, Aristóteles reflete também sobre o papel que pode desempenhar a politike na vida prática. Compara o postulado dessa pragmática com o ponto que o arqueiro toma como mira quando aponta para o objetivo da caça. Com esse ponto na mira acertará melhor. Isso não significa que a arte do tiro a arco consista somente em apontar para esse ponto. Deve-se dominar, antes, essa arte para poder acertar. Mas o ponto pode ser útil para facilitar a pontaria, para manter a direção do disparo com mais precisão. Aplicando essa imagem à filosofia prática, também aqui devemos partir do princípio de que o ser humano se guia, em suas decisões concretas, de acordo com seu ethos, pela racionalidade prática e para isso não depende das orientações de um mestre. Também aqui a pragmática ética pode oferecer certa ajuda para se evitar conscientemente os erros, fazendo com que a reflexão racional tenha consciência dos objetivos últimos de sua ação. Essa pragmática não se limita a um campo particular. Também não é a aplicação de uma faculdade a um objeto. Pode desenvolver métodos — são regras práticas mais que métodos — e pode converter-se em verdadeira maestria num indivíduo determinado. Mas, apesar disso, não é uma “faculdade” que escolhe cada vez (por conta própria ou a pedido) sua tarefa como uma capacidade técnica. Apresenta-se, antes, como a praxis da vida a apresenta. Assim, a filosofia prática de Aristóteles difere do saber técnico supostamente neutro do especialista, que aborda [317] as tarefas da política e da legislação como um observador distante. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Mas há também um outro extremo do acordo que não motiva a se falar de “texto”. Tal é, por exemplo, a comunicação científica que pressupõe determinadas condições de entendimento. Isso depende do tipo de destinatário; refere-se ao especialista. Se de um lado a notícia somente é válida para mim mesmo, a comunicação científica, embora venha publicada, não é para todos; somente pretende ser compreensível para aquele que está familiarizado com a situação da investigação e sua linguagem. Cumprida essa condição, o colega não recorrerá geralmente ao texto enquanto texto. Ele só o fará quando a idéia expressa lhe parecer demasiado estranha e então precisa perguntar-se se ela não contém um mal-entendido. A situação é bem distinta, obviamente, para o historiador da ciência, que considera esses mesmos testemunhos científicos como verdadeiros textos. Esses requerem uma interpretação, uma vez que aqui o intérprete não é o leitor previsto e precisa saltar a distância que medeia entre ele e o leitor originário. O conceito de “leitor originário” é sem dúvida muito vago, como assinalei em outro lugar, mas adquire seu perfil no curso da investigação. Pela mesma razão em geral uma carta não é considerada como texto, quando nós mesmos somos destinatários. Então se entra na situação de diálogo escrito sem interromper o curso contínuo, caso não se interponha um obstáculo especial para a compreensão que obrigue a recorrer ao texto mesmo. No fundo, o diálogo escrito exige a mesma condição básica válida para o intercâmbio oral. Os dois interlocutores desejam sinceramente entender-se. Assim, sempre que se busca um entendimento, há boa vontade. A questão é saber até que ponto se dá essa situação e suas implicações quando não se especifica um destinatário ou vários deles, quando o destinatário é o leitor anônimo ou quando não se tem em mente o destinatário mas quem busca compreender o texto é um estranho. Escrever uma carta é uma tentativa de diálogo como qualquer outra, e como no contato direto realizado na linguagem e em todas as situações [344] pragmáticas cotidianas, somente a dificuldade no acordo motivará o interesse pela literalidade do que é dito. VERDADE E METODO II OUTROS 24.