Um outro exemplo muito simples é o conceito aristotélico de hylé, a matéria. Quando falamos de matéria já nos encontramos muito distantes da compreensão aristotélica do conceito de matéria. Isto porque Aristóteles compreendeu hylé, que originariamente significa madeira para construção, empregada para com ela se fazer algo, como um princípio ontológico. Expressa o espírito técnico dos gregos, que colocam essa palavra num lugar central na filosofia. Aquilo que é a forma, aparece como o resultado de um esforço e produção técnicos, que conformam algo que não tinha forma. Seria, no entanto, subestimar Aristóteles, acreditar que o conceito aristotélico de hylé equivaleria ao conceito tosco de um material que é por si e que depois o artesão espiritual toma e lhe imprime “forma”. Com esse conceito tosco tirado do universo do artesão, Aristóteles quis descrever sobretudo uma relação ontológica, um momento estrutural do ser que exerce sua função em todo pensamento e conhecimento dos entes, não apenas naquilo que nos rodeia como natureza, mas também no âmbito da matemática (noété hylé). Quis mostrar que, ao conhecermos e determinarmos algo como algo, esse é sempre pensado como algo ainda indeterminado, que só distinguimos de todo o resto por uma determinação adicional. É nesse sentido que afirma que a hylé exerce a função de gênero. A isso corresponde a teoria clássica da definição de Aristóteles, segundo a qual a definição contém o gênero próximo e a diferença específica. No pensamento aristotélico, portanto, a hylé assumiu função ontológica. . VERDADE E METODO II PRELIMINARES 7.
Convém recordar aqui o lugar especial que ocupa a filosofia prática em Aristóteles. Chama-se “philosophia” e isso implica um interesse “teórico” e não prático. Mas mesmo assim não se cultiva pelo mero desejo de saber, como acentua Aristóteles em sua Ética, mas por causa da arete, isto é, por causa do ser e agir práticos. Pois [291] bem, parece-me digno de nota que se possa afirmar o mesmo a respeito do que Aristóteles, no livro VI da Metafísica, chama “poietike philosophia” e que abarca tanto a poética como a retórica. Nem uma e nem outra são variedades da “techne”, no sentido do saber técnico. Ambas estão baseadas numa faculdade universal do ser humano. Sua posição especial em relação às “technai” não tem uma caracterização distintiva tão clara como é o caso da idéia da filosofia prática, caracterizada por sua relação polêmica com a idéia platônica do bem. Ademais, creio que, em analogia com a filosofia prática, pode-se considerar a posição particular e a especificidade da filosofia poética como uma conseqüência do pensamento aristotélico. Seja como for, a história acabou tirando essa conseqüência. O trivium, que se diferencia em gramática, dialética e retórica, e que inclui sob a retórica também a poética, em relação a todos os modos específicos do fazer ou do produzir algo, ocupa um posto tão universal como o posto que compete à praxis em geral e à racionalidade que a orienta. Essas partes do trivium, longe de ser ciências, são artes “liberais”, ou seja, pertencem à postura básica da existência humana. Não são algo que se faz ou se estuda para que se venha a ser então aquele que aprendeu essas artes. Essa capacidade de formação faz parte das possibilidades do ser humano como tal, faz parte daquilo que todo indivíduo é ou pode fazer. VERDADE E METODO II OUTROS 20.
Creio que aqui o pensamento aristotélico trilha seu próprio caminho; caminho, se não estou enganado, exemplar para nosso próprio pensamento sobre o saber acerca do homem e sua historicidade. Seguindo Aristóteles, não precisamos buscar, partindo de um conceito geral de ciência, o caráter específico desse saber a respeito do que é humano. Basta indagarmos pelo meio de linguagem que transmite esse saber, baseando-nos em sua verdadeira origem: a realidade social do ser humano. Não se trata apenas de assinalar o lugar central à linguagem e à sua mediação no pensamento da filosofia ou na teoria das ciências sociais. É preciso também explicitar as implicações normativas contidas no conteúdo transmitido por ela. VERDADE E METODO II OUTROS 23.
O que mais me admira na defesa que Strauss faz da filosofia clássica é seu esforço por compreendê-la como uma unidade, de modo que a oposição extrema entre Platão e Aristóteles tanto em relação à forma quanto ao sentido da questão pelo bem parece não lhe causar preocupações. Os primeiros estímulos que recebi de Heidegger tornaram-se fecundos entre outras coisas porque involuntariamente me ajudaram a penetrar mais fundo no problema hermenêutico da Ética a Nicômaco. Não creio, de modo algum, que este seja um uso indevido do pensamento aristotélico. Isso nos ensina, antes, como podemos extrair dali um possível ensinamento, uma crítica do universal-abstrato, nos moldes como essa crítica se tornou determinante para a situação hermenêutica com o surgimento da [423] consciência histórica, sem precisar do extremismo dialético hegeliano e por conseguinte sem a conseqüência insustentável representada no conceito do saber absoluto. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.