Gadamer (VM): ordem mundial

Pela primeira vez levanta-se a questão da ordem mundial. Não se trata mais de reconhecer uma ordem instituída, mas planejar e criar uma ordem não instituída. Há que se perguntar se é uma problemática correta: assumir que algo que ainda não existe deva ser planejado e criado. Sabemos que, mesmo sendo desejo de todos, não existe uma ordem mundial entre os povos. Podemos constatá-lo pelo fato de as idéias sobre uma ordem justa divergirem a tal ponto que hoje predomina o discurso resignado sobre a coexistência. Mas esse discurso, nascido do equilíbrio das armas nucleares, contém um enunciado que põe em risco o sentido da própria questão. Tem ainda sentido falarmos da criação de uma ordem mundial, quando já de início deparamo-nos com a falta de consenso sobre as idéias de uma ordem justa? Podem-se medir os planejamentos com os padrões da ordem mundial, se não sabemos para onde vão nos levar os passos intermediários e até quem sabe todos os passos possíveis? O planejamento em escala mundial não depende sempre de que haja uma determinada idéia comum sobre o objetivo a ser alcançado? Existem certamente alguns setores parciais encorajadores, como por exemplo, o âmbito da saúde mundial, do tráfego mundial e talvez também da alimentação mundial. Mas, (156) seguindo-se esse caminho, poderemos progredir e ampliar lentamente o espectro daquilo que deve ser regulado racional e unitariamente, de modo a alcançar ao final um mundo ordenado e regulado racionalmente? Um aspecto que depõe contra isso é que o conceito de ordem mundial supõe necessariamente uma diferenciação de conteúdo, dependendo do ponto de vista que adotamos com relação à ordem. Isso adquire clareza metodológica quando, junto com esse conceito, pensamos também o seu possível contrário. É absolutamente natural que as nossas representações do que é justo, bom etc. sejam muito menos precisas e determinadas do que as representações do injusto e do mal etc. O negativo ou privativo tem sabidamente a vantagem de se impor por si próprio à nossa vontade de transformação, como aquilo que deve ser negado e eliminado, ganhando com isso um perfil definido. Assim, é sempre mais fácil definir o conceito de desordem para superá-lo, e conseguir um sentido diferenciado de ordem per contrarium. Mas será ainda legítimo transpor para a totalidade da ordem mundial âmbitos parciais onde reina a desordem e onde se deve restabelecer a ordem? Tomemos o exemplo da desordem econômica. O âmbito da economia parece ser o lugar onde mais facilmente se pode alcançar uma representação racional de ordem. Toda situação que impede uma racionalidade econômica poderia ser chamada de desordem. Mas, sob o conceito de bem-estar geral, há certamente também diferentes concepções de ordem econômica mundial que não se deixam homologar em nenhuma grande fábrica mundial. Assim, por exemplo, a questão de sabermos se é melhor admitir um ganho exagerado das empresas em prol do crescimento generalizado do bem-estar ou se devemos preferir, por motivos político-sociais, uma economia estatal e portanto burocratizada, apesar de seu menor grau de efetividade. Mas será que isso é ainda uma questão puramente econômica? Certamente não. Justamente porque aquilo que está em jogo aqui são pontos de vista políticos diferentes, o aspecto econômico permanece basicamente intocado. A racionalidade crescente da cooperação econômica em nível mundial parece ser um critério autêntico para definir o sentido da ordem mundial. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.

Apesar disso, encontramos aí uma pressuposição questionável: a impossibilidade de desvincular o aspecto econômico do político. Será que assim como podemos falar de um estado de desordem econômica e ordem racional da economia mundial, também podemos determinar o estado de desordem política, cuja superação nos permitiria conceber racionalmente o conceito de ordem política? Podemos dizer que evitar a autodestruição global poderia representar um critério inequívoco para a política mundial, assim como o bem-estar geral poderia representá-lo no caso da economia mundial. Mas será um paralelo verdadeiro? Derivam-se daí realmente idéias de ordem política capazes de alcançar um consenso racional? Se afirmarmos, por exemplo, que o objetivo de toda política seria a conservação da paz, isso pode ser bem pouco esclarecedor quando se refere a guerras convencionais. Pois literalmente isso significaria que o status quo é a ordem mundial a ser conservada. Trata-se de uma conclusão que atualmente está pouco a pouco se impondo sob a pressão do equilíbrio nuclear, restringindo cada vez mais o espaço para possíveis mudanças na política mundial. Mas será que isso pode ser um critério para a política e um ideal a ser perseguido? A política pressupõe sempre a mutabilidade da situação? Ninguém nega que existem reformulações políticas “justas”, que estão a serviço de uma ordem político-mundial “justa”. Com isso, porém, renova-se a questão: Qual é o padrão que mede essa justiça? Uma imagem da ordem política? Mesmo que se trate de idéias de ordem político-mundial tão racionais como a unificação européia, o critério é muito inseguro. Seria “justa” uma tal Europa, isto é, representaria um progresso na ordem mundial, se com isso fossem destruídas relações mundiais de economia e política e fosse rompida, por exemplo, a coesão da Commonwealth? Será que isso traria mais ordem ou mais desordem? VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.

Também não existe nenhum fundamento racional que justifique admitir que a ampliação das áreas em que o planejamento e a ordem racional são bem-sucedidos poderia nos aproximar de uma ordem política racional do mundo. Com o mesmo direito podemos (158) chegar à conclusão inversa e teremos que reconhecer o crescente perigo representado pela utilização de nexos racionais para fins irracionais, como expressa o ditame: “primeiro a obrigação, depois o prazer”. Devemos perguntar de modo ainda mais radical se não é exatamente a cientifização de nossa economia e de nossa vida social — pense-se por exemplo nas pesquisas de opinião e nas estratégias de sua formação — que, se não fomentou, ao menos tornou consciente a incerteza com relação aos fins últimos, isto é, sobre o autêntico conteúdo da ordem mundial. A cientificização encobre a incerteza de seus critérios de ordem, logo no instante em que transforma o todo da configuração do mundo em objeto de seu planejamento elaborado e controlado cientificamente. Será que a tarefa acabou sendo mal colocada? Por mais que a atuação cientificamente racionalizada alcance uma infinidade de setores parciais, é lícito pensar a totalidade da ordem do mundo como objeto de uma tal planificação e realização racionais? VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.

Todavia, essas culturas representam apenas um caso particular de uma problemática mais abrangente. Não me parece que a questão mais premente seja como se há de conciliar as civilizações européias com tradições estrangeiras de países distantes e chegar a um equilíbrio fecundo, mas como se deve, em nosso próprio solo cultural, avaliar o significado desse processo civilizatório possibilitado pela ciência e conciliá-lo com as tradições religiosas e morais de nossa sociedade. Pois esse é na verdade o problema da ordem mundial que hoje nos ocupa. O sucesso civilizatório da ciência européia fez com que esse problema fosse colocado em todas as partes com a mesma radicalidade. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.

A pergunta pelas formas de ordenamento de nosso mundo, tanto o de hoje como o futuro, coloca-se como uma pergunta puramente científica: Que podemos fazer? Como podemos organizar as coisas? Como se apresentam as bases sobre as quais podemos (160) planejar? Que devemos modificar e observar para que a administração de nosso mundo se torne cada vez melhor e menos conflituosa? A idéia de um mundo dotado de uma administração perfeita parece ser o ideal negado justamente aos países mais avançados, em virtude de sua concepção de vida e de suas convicções políticas. É interessante notar que esse ideal se apresenta como o ideal da administração perfeita e não como um ideal de futuro com um conteúdo definido, como por exemplo o estado da justiça, base para a utopia do Estado platônico, ou como o Estado mundial, formado pelo predomínio de um determinado sistema político, de um povo ou uma raça sobre outros sistemas, povos e raças. A base do ideal de administração é uma idéia de ordem que não comporta nenhum conteúdo específico. O objetivo declarado de toda administração não é o saber sobre que tipo de ordem deve dominar, mas saber que tudo deve ter sua ordem. Por isso, o ideal da neutralidade pertence essencialmente à idéia de administração. O que se busca é o bom funcionamento como um valor em si. É bem provável que o fato de os grandes impérios mundiais de hoje poderem se encontrar e alcançar um equilíbrio no terreno neutro de um tal ideal administrativo não chegue a representar nem sequer uma esperança utópica. A partir disso, torna-se óbvio considerar a idéia de uma administração mundial como a forma de ordem do futuro. Nela a objetivação da política encontraria sua verdadeira perfeição. Será então que o ideal formal da administração mundial representa a realização da idéia de ordem mundial? VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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